Apesar
do susto inicial de sentir um focinho frio a tocar-lhe no braço nu sem antes
ter dado pela aproximação do animal, preparava-se para lhe afagar a cabeça,
como costumava fazer a cães que se mostravam amistosos, quando parou,
estarrecido. Não, não era possível, sabia que não era possível, mas quis muito
acreditar, pelo menos durante uns instantes.
Era
igualzinho ao Popi, tinha até a mesma mancha clara numa orelha, o mesmo ar de quem está sempre a preparar alguma, um
olhar direto mas ao mesmo tempo decidido e direto.
Muito
estranho, aparecer um cão assim tão parecido e escolhê-lo a ele, de entre os
muitos utentes daquela esplanada cheia.
Tentou
manter os pensamentos estritamente no presente e no cão, com a disciplina
rígida que fizera por aprender nos últimos anos. Sabia que se a mente lhe
fugisse para o cantinho que fechara a sete chaves e de que vigiava ferozmente o
acesso, destruiria em segundos a pouquíssima paz de espírito que criara com
tanto custo.
Para
disfarçar, olhou à volta à procura do dono, preparando um sermão sobre a
inconsciência – mais, a ilegalidade – de deixar um animal à solta num sítio tão
movimentado. Mas não viu ninguém, ou antes, viu muita gente mas ninguém que
parecesse procurar um cão.
Cão
esse que escolheu esse momento para lhe pôr a pata no braço, olhando-o com o
mesmo ar de pedinchice de que o Popi era mestre.
Não
aguentou mais. Com um gesto brusco, levantou-se, agarrou no jornal e nos óculos
de sol que pousara na mesa e afastou-se rapidamente.
Pressentiu
que o cão o seguia, mas nem se virou, limitou-se a acelerar ainda mais o passo.
Devia ter resultado, deixou de lhe sentir a presença.
Mais
calmo, abrandou o ritmo, estava quase sem fôlego, é que a idade e a falta de
exercício não perdoam. Começava a acalmar-se quando o som de uma travagem
brusca e gritos agudos se sobrepuseram ao ruído usual de uma movimentada tarde
de sábado naquela zona tão turística.
Estacou,
hirto de pavor, mas mesmo assim não se virou. É que sabia o que veria se o
fizesse, o corpo da filhinha, abraçada ao Popi, meios engolidos pelo carro que
os atropelara fatalmente há mais de vinte anos quando a criança se precipitara
sem olhar para ir buscar o seu cãozinho que escapara à trela e decidira
atravessar a rua.
Imagem: QuickWrite
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