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domingo, 9 de junho de 2024

Cão perseguidor


 

Apesar do susto inicial de sentir um focinho frio a tocar-lhe no braço nu sem antes ter dado pela aproximação do animal, preparava-se para lhe afagar a cabeça, como costumava fazer a cães que se mostravam amistosos, quando parou, estarrecido. Não, não era possível, sabia que não era possível, mas quis muito acreditar, pelo menos durante uns instantes.

Era igualzinho ao Popi, tinha até a mesma mancha clara numa orelha, o mesmo  ar de quem está sempre a preparar alguma, um olhar direto mas ao mesmo tempo decidido e direto.

Muito estranho, aparecer um cão assim tão parecido e escolhê-lo a ele, de entre os muitos utentes daquela esplanada cheia.

Tentou manter os pensamentos estritamente no presente e no cão, com a disciplina rígida que fizera por aprender nos últimos anos. Sabia que se a mente lhe fugisse para o cantinho que fechara a sete chaves e de que vigiava ferozmente o acesso, destruiria em segundos a pouquíssima paz de espírito que criara com tanto custo.

Para disfarçar, olhou à volta à procura do dono, preparando um sermão sobre a inconsciência – mais, a ilegalidade – de deixar um animal à solta num sítio tão movimentado. Mas não viu ninguém, ou antes, viu muita gente mas ninguém que parecesse procurar um cão.

Cão esse que escolheu esse momento para lhe pôr a pata no braço, olhando-o com o mesmo ar de pedinchice de que o Popi era mestre.

Não aguentou mais. Com um gesto brusco, levantou-se, agarrou no jornal e nos óculos de sol que pousara na mesa e afastou-se rapidamente.

Pressentiu que o cão o seguia, mas nem se virou, limitou-se a acelerar ainda mais o passo. Devia ter resultado, deixou de lhe sentir a presença.

Mais calmo, abrandou o ritmo, estava quase sem fôlego, é que a idade e a falta de exercício não perdoam. Começava a acalmar-se quando o som de uma travagem brusca e gritos agudos se sobrepuseram ao ruído usual de uma movimentada tarde de sábado naquela zona tão turística.

Estacou, hirto de pavor, mas mesmo assim não se virou. É que sabia o que veria se o fizesse, o corpo da filhinha, abraçada ao Popi, meios engolidos pelo carro que os atropelara fatalmente há mais de vinte anos quando a criança se precipitara sem olhar para ir buscar o seu cãozinho que escapara à trela e decidira atravessar a rua.

Luísa LOpes

Imagem: QuickWrite

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