O
encontro/desencontro
JP
sentou-se numa mesa, situada num recanto anichado debaixo de uma escada, que
dava para a parte superior do salão. Era a primeira vez que tinha entrado
naquele estabelecimento para tomar um café e descansar um pouco os pés da
caminhada desde a estação do metro até ali.
O
cansaço não tinha sido por causa da distância percorrida, que não foi muita, mas
por causa da viagem em pé na carruagem que o tinha maçado um pouco.
Aquela
estação onde saiu não era o seu ponto de destino, mas naquele dia o Metro vinha
à pinha e essa foi a razão que o levou a sair antes do tempo.
Nunca
tinha ido àquele lado da cidade e, por isso, não conhecia aquela zona que ainda
ficava muito distante da sua área de residência e também do seu local de
trabalho, que ficava quase no fim da linha. Digamos que ficou num ponto
intermédio entre a origem e o fim.
JP
ia tão entretido nestes pensamentos que não viu que a seu lado se tinha sentado
uma jovem. Só quando ela, numa voz suave, pediu um chá e uma torrada é que ele
despertou para a realidade vivida à sua volta. Olhou para ela e momentaneamente
os seus olhares cruzaram-se, mas instantaneamente descruzaram-se e não mais se
voltaram a encontrar, durante o tempo que estiveram lado a lado no café, que
não foi muito tempo. A jovem, assim que comeu a torrada e bebeu o chá
levantou-se e foi-se embora. Ele ainda ali ficou mais algum tempo e depois
também foi ao seu destino.
Esta
cena passou-se numa quinta-feira de manhã.
O
pensamento de JP teimava em voltar ao cruzar dos olhares e por aí se detinha
mais tempo do que o que o tempo que tinha acontecido, que foi um cruzar de olhares
fugaz, mas, mesmo assim, parece que deixou marcas.
No
outro dia voltou ao café, mas a companhia da mesa ao lado não apareceu. Voltou
na segunda, na terça, na quarta e na quinta, mas nada, só a mesa ocupada por
outras pessoas. Na semana seguinte arriscou voltar ao café na quinta-feira,
quinze dias depois, e viu-a sentada na mesma mesa a tomar um chá e a comer uma
torrada.
Sentou-se
na mesa anichada debaixo da escada e pediu um café. Levou a chávena à boca e
olhou para ela. Os olhares voltaram a cruzar-se, mas desta vez o tempo parou o
tempo e nele se cruzaram.
Nada
mais aconteceu e cada um foi para onde tinha projectado ir.
Quinze
dias depois, na quinta-feira, ao encontro dos olhares seguiu-se uma troca de
palavras de circunstância, mas que escondiam a promessa de encontro de outras
palavras.
O
café era muito frequentado e os clientes entravam e saiam ao ritmo dos seus
afazeres e ninguém queria saber de ninguém. Quem estava, estava, quem já não
estava não deixava rasto. Era a vida a andar numa cidade metropolitana, ninguém
reparava no outro, só aqueles dois, a jovem e o jovem, vizinhos circunstanciais
de mesa num café, situado num ponto intermédio entre a origem e o fim da viagem.
Correram tempos e uma quinta-feira os dois
jovens saíram juntos e despediram-se no passeio, seguindo cada um o seu
caminho. Nada sabiam um do outro, porque as conversas tocavam muitos assuntos, mas
nenhum de carácter pessoal. Até àquele momento nenhuma palavra acerca de cada
um deles, nenhuma inconfidência. Qualquer rumo de conversa que ousasse entrar
em domínios de personalidade era orientada com delicada leveza para outro
caminho.
Os
encontros continuaram e a relação entre os dois foi-se intensificando. À mesa
do café conversavam sobre tudo e mais alguma coisa, nada ficando por dizer.
Passaram a saber muito das preferências e gostos: leituras preferidas, filmes e
músicas, convicções políticas e religiosas, simpatias clubistas, posicionamento
relativamente às questões sociais e políticas.
De
uma coisa nunca falaram: Quem é Quem.
A
companhia circunstancial deu lugar à amizade que cresceu e se transformou numa
relação mais intensa e a intimidade começou a pontear e os afectos começaram a aparecer
com toda a naturalidade. Quando a afectividade rompeu as barreiras e a relação
de uma maior intimidade se mostrou em toda a sua beleza ela disse:
̶ Vamos continuar com a nossa relação da
maneira que ela está. Nenhum de nós vai tentar saber quem é quem, seremos dois amantes
que se conhecem um ao outro, mas que não conhecem quem é o outro.
Os
anos foram passando e o pacto foi cumprido. Nem nome, nem morada, nem estado
civil, nem profissão, nada de nada. Só eles os dois num presente sem rasto de
passado.
Durante
mais ou menos doze anos os vizinhos da mesa do café encontraram-se todas as
quintas f
eiras
de quinze em quinze e mantiveram intacta a sua relação amorosa.
Em
2020 o mundo foi assolado por uma pandemia que matou milhões de pessoas.
Numa
das quintas feiras de Março de 2020 ela sentou-se na mesa do café e pediu um
chá e uma torrada e esperou por ele.
Ele
não apareceu nesse dia de quinta-feira e entretanto foi imposto o período de confinamento
e o café fechou e o metro parou e as pessoas deixaram de andar na rua.
E
assim foi durante meses e meses.
Quando
o confinamento acabou, o café abriu, o Metro passou a funcionar e as pessoas
saíram para a rua.
As
quintas-feiras sucediam-se e ela sentava-se sempre na mesma mesa, pedia um chá
e uma torrada e continuava a esperar por ele.
Ele
nunca mais se sentou na mesa anichada debaixo da escada, que dava para a parte
superior do café.
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