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terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Um Artista das Artes Manuais

 

Um Artista das Artes Manuais

Júlio R. é um artista. A natureza tinha-o favorecido. As suas mãos desenhavam como ninguém, levavam o lápis para onde queriam que ele fosse. Faziam-no deslizar delicadamente sobre o papel e um desenho nascia em toda a sua beleza.

Tem cerca de 35 anos, mede cerca de um e setenta e cinco de altura, veste de forma neutra, cabelo curto, barba feita e sempre longe das confusões. Passa despercebido e faz tudo para não dar nas vistas. Desde muito cedo primou pela discrição.

Fez os seus estudos obrigatórios e depois entrou na área das artes. Acabada a aprendizagem dedicou-se ao desenho de rostos. Os traços e as sombras têm tal perfeição que parecem rostos com vida.

Não vende os seus desenhos, oferece-os. São o desenho e a oferta que vão dar origem a uma outra arte, praticada por muito poucos. Uma é o complemento da outra. Intrinsecamente nada têm a ver uma com a outra, o elo está na sua complementaridade. É do complemento artístico que Júlio R vive. Bem podia viver dos seus desenhos, mas é a outra arte que lhe dá gozo, que o sublima, que lhe dá pica, que o realiza.

Na criação das obras de arte são as mãos que detêm o poder, porque são elas que pensam e executam. Idealizar o desenho da obra, traçar as suas linhas, arquitectar um plano, encher tudo isto na imaginação não lhe rouba muito tempo. Basta um caderno, um lápis de carvão e as suas mãos.

Muito artistas executam a sua obra numa oficina, onde a matéria espera, sem vida, a existência de uma nova vida. Outros criadores trabalham sem oficina, são os artistas de rua, que trazem sempre consigo a matéria-prima, que vai dar origem à arte

Júlio R é um pouco de tudo. É um artista de todos os espaços, a sua oficina mora em todos os lugares, onde estejam pessoas. As pessoas são o início e o fim da sua arte, sem elas não havia criação.

Apesar de poder trabalhar a sua arte em qualquer espaço, o exercício artístico é feito no Metro, porque é neste meio de transporte que circula muita gente, os passantes ocasionais e os viajantes residentes. É nestes que se centra, em primeiro lugar, o foco de atenção do artista, com o objectivo de escolher a pessoa certa. Os viajantes de curta duração só têm interesse para finalizarem a actividade artística.

 A pessoa certa é aquela que viaja no dia-a-dia e de preferência durante um longo percurso. Ela será o Alfa e o Ómega da sua criação, porque nela se vai materializar a sua obra de arte. Ela vai ser o modelo.

Possuidor de um passe que cobre toda a área metropolitana pode viajar, vá para onde vá o Metro, sem tempo contado. Também pode entrar numa qualquer estação e ir por aí fora, saltando de zona em zona.

Quando pretende iniciar a criação, entra numa estação senta-se num lugar estratégico, onde possa ter uma visão de conjunto e estuda ao pormenor os viajantes. Durante uns dias viaja sempre no mesmo lugar, às mesmas horas, até se fixar definitivamente num dos viajantes residentes. É esse que vai ser o seu alvo. Procura reter tudo acerca da personagem: perfil do rosto, tipo de olhos, cabelos, rugas e também impressões sobre o seu comportamento e modo de estar, que vão dar consistência ao trabalho.

Em casa senta-se no estúdio e começa a traçar num caderno as notas recolhidas e, pouco a pouco, a reprodução do rosto da pessoa eleita aparece em esboço.

Os traços finais da obra serão riscados no metropolitano e é aí que a obra fica pronta.

No dia da revelação da obra de arte e antes de a dar a conhecer analisa o ambiente da carruagem onde se instala, estuda tudo ao pormenor, quem vai, quem entra, onde sai, o que traz consigo, o que veste, por aí fora, sem esquecer de analisar o perfil comportamental de todos.

Quando acha que está tudo em conformidade com o seu plano de ataque, Júlio R, levanta-se, dirige-se à pessoa desenhada e, com toda a pompa e circunstância, oferece-lhe o desenho do seu rosto, fazendo essa oferta com tanta eloquência que chama a atenção dos passageiros que, levados pela curiosidade, logo se interessam pelo se está a passar.

Assim, um considerável número de viajantes acotovelam-se para ver a obra-prima e um coro de exclamações aplaude a arte do artista.

Este, aproveitando o momento de diversão, sem que ninguém dê por ele, sai de mansinho na estação acabada de chegar.

Deixando para trás as manifestações de apoio à sua arte, sobe as escadas e sai para a cidade, levando com ele, uma carteira, a obra que as suas mãos de artista tiraram artisticamente do casaco de um dos incautos admiradores do seu desenho.

Quando está suficientemente longe da acção, abre a carteira e tira o que acha que é o justo. Paga-se somente pelo seu trabalho de artista. Se o dinheiro não chega para pagar, faz um desconto e fica tudo arrumado. Não mexe em mais nada, não olha para mais nada do que está na carteira. Se encontra um agente de autoridade no caminho entrega-lhe a carteira, dizendo que a encontrou no chão. Caso contrário, dirige-se à bilheteira de uma estação, entrega a carteira, “achada” a um funcionário e desaparece silenciosamente.

É o único artista que recebe um valor pelo seu trabalho de uma pessoa que não fica com a obra e que nem conhece nem o artista nem a pessoa que fica com ela.

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