Um
Artista das Artes Manuais
Júlio
R. é um artista. A natureza tinha-o favorecido. As suas mãos desenhavam como
ninguém, levavam o lápis para onde queriam que ele fosse. Faziam-no deslizar
delicadamente sobre o papel e um desenho nascia em toda a sua beleza.
Tem
cerca de 35 anos, mede cerca de um e setenta e cinco de altura, veste de forma
neutra, cabelo curto, barba feita e sempre longe das confusões. Passa despercebido
e faz tudo para não dar nas vistas. Desde muito cedo primou pela discrição.
Fez
os seus estudos obrigatórios e depois entrou na área das artes. Acabada a
aprendizagem dedicou-se ao desenho de rostos. Os traços e as sombras têm tal perfeição
que parecem rostos com vida.
Não
vende os seus desenhos, oferece-os. São o desenho e a oferta que vão dar origem
a uma outra arte, praticada por muito poucos. Uma é o complemento da outra.
Intrinsecamente nada têm a ver uma com a outra, o elo está na sua
complementaridade. É do complemento artístico que Júlio R vive. Bem podia viver
dos seus desenhos, mas é a outra arte que lhe dá gozo, que o sublima, que lhe dá
pica, que o realiza.
Na
criação das obras de arte são as mãos que detêm o poder, porque são elas que
pensam e executam. Idealizar o desenho da obra, traçar as suas linhas,
arquitectar um plano, encher tudo isto na imaginação não lhe rouba muito tempo.
Basta um caderno, um lápis de carvão e as suas mãos.
Muito
artistas executam a sua obra numa oficina, onde a matéria espera, sem vida, a
existência de uma nova vida. Outros criadores trabalham sem oficina, são os
artistas de rua, que trazem sempre consigo a matéria-prima, que vai dar origem
à arte
Júlio
R é um pouco de tudo. É um artista de todos os espaços, a sua oficina mora em
todos os lugares, onde estejam pessoas. As pessoas são o início e o fim da sua
arte, sem elas não havia criação.
Apesar
de poder trabalhar a sua arte em qualquer espaço, o exercício artístico é feito
no Metro, porque é neste meio de transporte que circula muita gente, os
passantes ocasionais e os viajantes residentes. É nestes que se centra, em
primeiro lugar, o foco de atenção do artista, com o objectivo de escolher a
pessoa certa. Os viajantes de curta duração só têm interesse para finalizarem a
actividade artística.
A pessoa certa é aquela que viaja no dia-a-dia
e de preferência durante um longo percurso. Ela será o Alfa e o Ómega da sua
criação, porque nela se vai materializar a sua obra de arte. Ela vai ser o
modelo.
Possuidor
de um passe que cobre toda a área metropolitana pode viajar, vá para onde vá o
Metro, sem tempo contado. Também pode entrar numa qualquer estação e ir por aí
fora, saltando de zona em zona.
Quando
pretende iniciar a criação, entra numa estação senta-se num lugar estratégico,
onde possa ter uma visão de conjunto e estuda ao pormenor os viajantes. Durante
uns dias viaja sempre no mesmo lugar, às mesmas horas, até se fixar
definitivamente num dos viajantes residentes. É esse que vai ser o seu alvo. Procura
reter tudo acerca da personagem: perfil do rosto, tipo de olhos, cabelos, rugas
e também impressões sobre o seu comportamento e modo de estar, que vão dar
consistência ao trabalho.
Em
casa senta-se no estúdio e começa a traçar num caderno as notas recolhidas e,
pouco a pouco, a reprodução do rosto da pessoa eleita aparece em esboço.
Os
traços finais da obra serão riscados no metropolitano e é aí que a obra fica
pronta.
No
dia da revelação da obra de arte e antes de a dar a conhecer analisa o ambiente
da carruagem onde se instala, estuda tudo ao pormenor, quem vai, quem entra,
onde sai, o que traz consigo, o que veste, por aí fora, sem esquecer de
analisar o perfil comportamental de todos.
Quando
acha que está tudo em conformidade com o seu plano de ataque, Júlio R, levanta-se,
dirige-se à pessoa desenhada e, com toda a pompa e circunstância, oferece-lhe o
desenho do seu rosto, fazendo essa oferta com tanta eloquência que chama a
atenção dos passageiros que, levados pela curiosidade, logo se interessam pelo se
está a passar.
Assim,
um considerável número de viajantes acotovelam-se para ver a obra-prima e um
coro de exclamações aplaude a arte do artista.
Este,
aproveitando o momento de diversão, sem que ninguém dê por ele, sai de mansinho
na estação acabada de chegar.
Deixando
para trás as manifestações de apoio à sua arte, sobe as escadas e sai para a
cidade, levando com ele, uma carteira, a obra que as suas mãos de artista
tiraram artisticamente do casaco de um dos incautos admiradores do seu desenho.
Quando
está suficientemente longe da acção, abre a carteira e tira o que acha que é o
justo. Paga-se somente pelo seu trabalho de artista. Se o dinheiro não chega
para pagar, faz um desconto e fica tudo arrumado. Não mexe em mais nada, não
olha para mais nada do que está na carteira. Se encontra um agente de
autoridade no caminho entrega-lhe a carteira, dizendo que a encontrou no chão.
Caso contrário, dirige-se à bilheteira de uma estação, entrega a carteira, “achada”
a um funcionário e desaparece silenciosamente.
É
o único artista que recebe um valor pelo seu trabalho de uma pessoa que não
fica com a obra e que nem conhece nem o artista nem a pessoa que fica com ela.
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