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sábado, 10 de fevereiro de 2024

Viajante



Estamos próximo do horário marcado. Meu sobretudo de lã pouco me protege do frio. Não deveria ter esquecido o gorro em casa, talvez um boné com protetor de orelhas fosse ainda melhor, pois as minhas parecem congelar com o vento frio que sopra por debaixo do viaduto da velha linha de trem, próxima da antiga Estação Ferroviária. Na madrugada, poucas pessoas circulam nesta região da cidade, que em suas sombras parece esconder alguns de seus fantasmas. Mas não são os fantasmas que me preocupam. O perigo ronda cada esquina, principalmente para um policial identificado.

Finalmente vou encontrá-lo, depois desses mais de trinta anos de buscas por respostas. Este trabalho obsessivo tem roubado grande parte do meu tempo.

Acho que vou caminhar um pouco, meus pés também estão gelados, parecem queimar. Preciso encontrar uma bebida quente. A porta como ele disse, não abrirá antes dos cinco minutos da hora marcada.

Enquanto tento engolir o café com gosto de queimado e observo o homem bêbado que conversa com a prostituta, lembro que numa outra madrugada fria, no último dia de junho de 1951, acordei encharcado pelo suor, após um pesadelo. Nele uma velha senhora descansava sentada em sua cadeira enquanto examinava uma pequena caixa com fotografias, recortes de jornal e alguns objetos. Falava sozinha, como quem comenta as lembranças que cada um dos objetos lhe trazia à mente. Algumas vezes sorria, em outras algumas lágrimas corriam sobre sua face. Levantou e colocou a caixa próxima da lareira. Voltou à cadeira, colocou as mãos sobre os braços do móvel e iniciou um processo de concentração. Fechou os olhos. Parecia controlar cuidadosamente os movimentos de respiração.

De repente, uma luz que alternava tons de azul e verde, pareceu surgir de seu peito e em poucos segundos transformou-se em uma bola de fogo. Apesar do aparente calor das chamas ela não esboçou reação e rapidamente seu corpo desapareceu.

Era como se eu estivesse lá e, antes que pudesse sentir em meu corpo as ondas de calor, acordei assustado.

Não consegui entender o significado do sonho até que três dias depois, lendo o jornal, me deparei com a reportagem da estranha morte de uma senhora americana de 67 anos. Os restos carbonizados de suas roupas foram encontrados na cadeira em que ela estava sentada.

A polícia arrombou a casa e não encontrou nada mais do que seus sapatos e uma fina corrente. Não havia sinais de fogo em qualquer outro local da casa. Ninguém entendeu como um corpo humano pudesse ter sido destruído e o fogo confinado a uma área tão pequena. A mobília da sala nem mesmo estava chamuscada ou marcada pela fumaça.

A matéria foi finalizada com a afirmação de que muitos outros casos de combustão humana espontânea haviam sido investigados por cientistas, mas não havia nenhuma teoria plausível. Pessoas repentinamente se incineravam, algumas vezes na frente de outras pessoas.

Era a descrição do meu sonho! Algo me intrigava: por que ela não reagiu às chamas?

A possibilidade de que um corpo humano entrasse em combustão de forma espontânea seria remota, por ser formado principalmente por água. Na sua composição também há metano e gordura, porém, uma cremação exige altas temperaturas, superiores a 900°C, para que possa ser transformado em cinzas. Alguns pesquisadores acreditavam na teoria do “efeito pavio” onde as roupas da vítima ficam encharcadas com a própria gordura e funcionam como um pavio de vela. Um tipo raro de descarga elétrica estática iniciaria a ignição. Havia também explicações paranormais, outras naturais, porém nada conclusivo.

Comecei a me preocupar mais com isso, quando uma série de acontecimentos similares surgiram na minha cidade.

Está quase na hora, será melhor seguir até lá. A ansiedade agora é maior. Me distanciei bastante do local.

Na volta, me deparei com muitos moradores de rua. Alguns se amontoam embaixo das marquises para espantar o frio. Outros queimam papel e madeira em latões. O efeito pavio não justificava uma combustão espontânea. Essas pessoas seriam sérias candidatas a virar cinzas. Mas eu não havia confirmado as minhas suspeitas: alguém se aproveitava da lenda da combustão espontânea de corpos para a realização de assassinatos em série.

Finalmente, a porta do velho edifício está aberta e no final do hall de entrada, sob uma luz tênue, há um antigo elevador com a porta protegida por uma pantográfica metálica. O elevador revestido em madeira escura confere ao ambiente um tom ainda mais claustrofóbico. Os ruídos dos cabos aumentam ainda mais a insegurança. Foram alguns longos segundos para que o lento equipamento chegasse até o oitavo andar.

No corredor escuro esforcei-me para localizar o número 802. Não havia campainha. Bati à porta. Estava aberta. Entrei e percebi a presença de um homem parado em frente da janela da sala que dava para a avenida. O ambiente não permitia mais visão do que a rua lá fora e que agora estava coberta por uma espessa neblina, típica do inverno da capital paranaense. A lâmpada do único abajur, de revestimento turvado pelo tempo, transformava a imagem do sujeito em nada mais do que uma sombra.

Ele virou-se lentamente, cumprimentou-me a distância e recomendou que me sentasse. Aparentava 80 anos de idade, cabelos grisalhos, bem penteados. Da altura de seus 1,80 metros ele parecia fitar-me friamente. A pouca iluminação do ambiente não me permitia perceber a cor de seus olhos, mas acredito eram claros. Vestia um blusão de lã vermelho e uma calça jeans azul. Não portava qualquer adorno como anel ou mesmo um relógio de pulso. Os bolsos pareciam vazios, a não ser pelo contorno de um lenço no bolso direito. Ele não estava armado. Eu, sim.

– Também aguardei muito por esse encontro, delegado.

– Parece que o senhor está tentando facilitar a minha vida, não é? Mas por que tanto tempo?

– Não houve escolha.

– Sim, não houve escolha para todas as pessoas que foram assassinadas.

– Percebo que não aprendeu muito em todos esses anos de busca, policial.

– Já resolvi muitos casos, já levei muito bandido para os tribunais, mas confesso que você conseguiu me enganar, senhor...?

– O nome não importa, não fará diferença alguma.

– Não? Pretende acabar com a minha vida também? Depois vai incendiar o meu corpo?

Eu olhava em volta e não encontrava qualquer sinal de equipamento que pudesse cremar um corpo. Também não havia sinal de combustíveis ou explosivos no entorno. Tudo parecia limpo, perfeitamente organizado, apesar da idade dos móveis e objetos que ocupavam o lugar.

– Nunca incendiei o corpo de ninguém, delegado.

– Como explica todas as mortes? Você sabe que descobri que há uma ligação entre todas as pessoas que aparentemente passaram por combustão espontânea. Parece-me que participavam de alguma organização secreta.

– Tínhamos os nossos segredos, sim. Mas não matamos uns aos outros. Prezamos a vida, doutor.

O homem até me parecia sincero, mas a minha formação me fazia desconfiar de suas intenções. As pessoas desaparecidas, todas tinham as mesmas características, homens e mulheres, todos com mais de cinquenta anos, sem relacionamentos aparentes, sem filhos, sem uma ocupação definida. Viviam com algum recurso transferido para suas contas na forma de benefícios de previdência privada. Ninguém rico ou influente.

– Sabe, delegado, esta nossa passagem pela Terra é como uma lâmpada elétrica que possui certo número de horas de vida útil. Chegado o seu fim, se apaga e a energia que ali se concentrava acaba ocupando outro lugar, outro espaço, algumas vezes num outro plano.

– O senhor está morrendo?

– Não, me transformando.

Ele pediu que eu o ouvisse atentamente, descreveria o que eu deveria fazer dali em diante. Falou por quase três horas sobre as experiências acumuladas. Esqueci o frio, não vi o tempo passar. Ao final, me entregou um caderno com anotações e uma lista de telefones e endereços. Os números não eram convencionais, como os que se usavam no início da década de 1980.

Me entregou uma caixa com um aparelho comunicador. Me disse que ele só funcionaria em 1991, pois ainda não havia tecnologia disponível para conectá-lo a uma rede. Por hora, eu deveria me contentar em assistir a alguns vídeos. Duvidei, em nada aquilo se parecia com um projetor ou com um videocassete. Mas ele mostrou como funcionava. Eu via o futuro? A tal organização possuía um bom estúdio de cinema – pensei.

– Não são filmes de ficção. Este é o futuro. Neste aparelho também estão armazenadas algumas informações criptografadas, que oportunamente os que receberem as suas mensagens conseguirão visualizar

– Criptografadas.

– Sim, são codificadas. Só quem tem a chave poderá acessá-las.

– Mas porque vocês mesmo não entregam?

– Eu e meus amigos recebemos uma missão. Pode não acreditar, mas viajamos no tempo. Outros deveriam ter nos substituído, mas por alguma falha que ainda não conhecemos, não chegaram. Assim, o escolhemos para fazer a ponte no tempo, não viajando, mas esperando, fazendo o nosso papel. Eu sou o último.

– E se eu não fizer isso?

– Se não o fizer, você não terá futuro. Muitos, milhões também não.

Logo depois, me pediu que eu seguisse meu caminho e que não mais voltasse ali. Achei que era a coisa certa a fazer.

Procurei a porta e desci. Os primeiros sinais de luminosidade começavam a surgir. Homens começavam a varrer as ruas e as marquises eram desocupadas à medida que o fluxo de pedestres e veículos começava a aumentar. Atravessei a rua e já do outro lado procurei a janela da sala do oitavo andar. Percebi uma forte luz azul que irradiava do mesmo local onde ele estava. Voltei correndo, subindo rapidamente os degraus e cheguei ofegante ao andar. A porta ainda estava aberta.

Já no corredor senti o odor adocicado da fumaça. As luzes azuis davam lugar a uma chama que alternava entre o verde, o laranja e o vermelho. Havia apenas silêncio, nem ondas de calor se podia ver, ouvir ou sentir. Ao final, um clarão e um flash de luz azul que se deslocou rumo ao infinito. Ele voltou para casa – pensei.

Saí de lá rapidamente, não entenderiam minha presença no local.

Resta-me esperar pelo sinal no aparelho.

Preciso pensar em como encerrar o caso. Também chegou a hora da minha aposentadoria.



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