Olhou
novamente para o calendário, com a vaga esperança de se ter enganado. Mas não,
bem marcado a vermelho, com inúmeras setas bem grossas a rodear o quadradinho,
para dar bem nas vistas, lá estava ela a data fatídica da reunião de toda a sua
família. Bom, família, é favor, entre tios e primos de vários graus eram mais
de 200 pessoas, sem contar que com a entrada na adolescência de vários
elementos das novas gerações era bem provável haver ainda mais namorados e
“amigos especiais” na mistura.
Por
este andar, as três pensões que costumavam ocupar, mais quartos diversos
espalhados por toda a vila, deixariam, em breve, de ser suficientes. Quanto às
refeições, bom, já estivera, como convidada, em inúmeros casamentos com bem
menos gente e, acima de tudo, com bem menor
quantidade e variedade de comida.
Não
que tivesse algo contra a família, era tudo boa gente, alguns, eram, até, bem
simpáticos. Só que... todo o clã – sim, era um autêntico clã – era virado para
as artes e apenas para elas. De todos os tipos, teatro, pintura, música,
escultura, não havia nenhum ramo em que pelo menos um dos membros não estivesse
metido. Até tatuagens, com um primo em segunda mão que era, segundo diziam, um
artista premiado e muito procurado.
Nem
as chamadas artes menores escapavam, bordados, rendas, quilts, tapetes, se
podia ter uma vertente artística lá estava um membro da cada vez mais extensa
família Gomes. Como uma exceção...
E
era esse, precisamente, o problema de Amanda em ir a estas reuniões anuais. É
que por mais que tentasse, e fazia-o desde bem miúda, era uma autêntica
nulidade para qualquer atividade mesmo vagamente artística. Acreditem, a sua
infância e adolescência tinham sido um verdadeiro calvário, saltitando de
familiar em familiar em busca de algo para que tivesse pelo menos um niquinho
de talento. Mas nada!
Para
grande escândalo da família, acabara por se decidir a estudar o que realmente a
atraía, física teórica, mais especificamente teorias da origem do universo. Uma
vez formada, e com belíssimas notas, diga-se de passagem, não tivera o menor
problema em encontrar um bom emprego num instituto de pesquisa, onde era feliz
51 semanas por ano, nem sequer pensando em tirar férias de mais de dois dias de
cada vez para não perder pitada do que poderia acontecer na sua ausência.
Mas,
chegava, depois, a malfadada 52.ª semana, que lhe estragava totalmente a
disposição umas semanas antes e depois. Tentara de tudo para se sentir
integrada, como namorar temporariamente artistas, quanto mais obscuro o que
faziam, melhor era, só que mesmo assim havia sempre algum familiar conhecedor
do assunto e que até fazia melhor, levando o seu suposto amor a deixá-la,
amuado, ao fim de umas horas.
Este
ano nem se dera ao trabalho de arranjar alguém, não valia a pena, só lhe
acarretaria uma dose adicional de olhares de pena, isto fora as inevitáveis
discussões com quem optasse por levar.
Enfim,
agora era tarde demais, não havia nada a fazer, daí a dois dias começaria a sua
provação, a menos que entretanto tivesse um acidente fatal ou, no mínimo,
suficientemente grave para uma estadia no hospital. Só que isso seria sorte a
mais...
Estava
ela a organizar o trabalho para a sua ausência de vários dias quando uma imagem
lhe despertou a atenção. Era uma de várias fotos que tirara com um microscópio
eletrónico de altíssima resolução a pequenas amostras de várias substâncias
para um estudo comparativo à escala atómica. Apesar de saber perfeitamente o
que representava, perdeu-se na beleza das cores e linhas e, sem quase dar por
ela, viu-se a rever todo o ficheiro.
Isto,
sim, era algo que lhe falava à alma, não as obras consideradas usualmente
artísticas, fossem de que tipo fossem, e que a deixavam sempre, mas sempre,
indiferente. Nem as chamadas obras-primas mundiais lhe despertavam o menor indício
de paixão, limitava-se a achá-las mais ou menos interessantes e não passava
disso.
De
repente, teve uma ideia absolutamente fabulosa. Usando a melhor impressora do
instituto, preparou uma pequena pasta com cópias das melhores imagens, ou
antes, das que achava mais atraentes, escolhendo, para isso, um papel de
belíssima qualidade e a melhor regulação de qualidade. Levou horas, mas o final
tinha um belíssimo portfólio de imagens “atómicas”.
E
foi com ele na bagagem que partiu, de ânimo bem mais leve, para o que era,
desde há muito, o seu calvário. É que desta vez, quando lhe perguntassem com ar
de comiseração se ainda se dedicava à tal física, puxaria das imagens e diria,
“Esta é a minha arte!” Modéstia à parte, antevia ser um sucesso entre os seus
familiares, pela primeira vez na vida. Mais ainda, tinha a certeza de que
ninguém, absolutamente ninguém, teria arte como a dela.
Luísa Lopes
Imagem feita com QuickWrite
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