Ansiosa,
vê-o deslocar-se pela divisão soturna, misto de sala e cozinha, com a segurança
de quem memorizou há muito os percursos mais curtos e eficientes. A cadeira de
madeira é incómoda, mas nem se atreve a mexer-se receosa de que se der nas
vistas a expulse apesar da tempestade. Sente-se uma intrusa na casa onde nasceu
e de onde foi levada aos três anos, logo após a morte da mãe. Poucas ali viveu
depois disso, mas do pouco que recorda a sala está diferente, mais austera, sem
nada de supérfluo exceto uma pequena moldura barata com a foto da mãe.
Fora
uma péssima ideia ter feito a longa viagem até à aldeia, mas não tinha dinheiro
nem para onde ir e um pai sempre é um pai. Mas fora um tremendo erro ter gasto
assim os últimos tostões. A expressão que lhe vira quando lhe tinha aberto a
porta provara-o. Se não tivesse começado a chover fortemente naquele momento
exato e ela com a filha nos braços nem a teria deixado entrar. Assim, de mau
modo, indicara-lhe um pequeno sofá desbotado a um canto onde a deitara,
tapando-a o melhor que podia com o seu próprio casaco, apesar de ter apanhado
alguma chuva.
Via-o
agora a caminhar de um lado para o outro, ignorando-as totalmente, a preparar
uma refeição que só esperava poder partilhar. Nada comera todo o dia, poupara o
pouco que lhe restava para a camioneta e para o táxi até ali.
Nem
podia sentir-se ofendida, o pai, afinal, não era seu pai, como lhe revelara a
tia antes de morrer. Nascera fruto da violação da mãe por um antigo namorado,
que nunca lhe perdoara ter escolhido outro. A mãe nunca recuperara totalmente,
tendo definhado até morrer. E ela fora logo recambiada para casa da tia, com o
pretexto de que um homem sozinho não saberia criar uma criança. Mas a razão era
outra, muito loura e de olhos claros, tinha herdado os traços do pai.
Apesar
de imóvel, a sua mente trabalhava a cem à hora, tentando encontrar argumentos para
o convencer a deixá-las ficar, pelo menos até descobrir um modo de refazer a
vida. Não tinha culpa do que acontecera à mãe nem de ter perdido a tia, ficando
sozinha aos dezasseis anos, tendo então sido recambiada para a aldeia de um pai
que mal conhecia e que claramente não a queria ali. O namorado, bom, esse era
culpa sua, mas fora apenas uma tentativa de escapar do tédio sem futuro daquele
povoado perdido nos montes e que tivera más consequências quando as promessas
de diversão e amor se converteram em pequena criminalidade, traições sem fim e
finalmente o abandono quando a presença de uma bebé se tornara demasiado
incómoda para a vida de farra que pretendia ter.
E
aqui estava ela, sem estudos, sem nada saber fazer, sem dinheiro ou casa e com
uma filha nos braços. Esta era a sua última esperança. Se não a aceitasse de
volta, não fazia a menor ideia do que poderia fazer, passara os últimos meses
em pensões cada vez mais manhosas, as únicas que um outro trabalhito lhe
permitiam pagar, mas esses escasseavam cada vez mais, havia muitos
desempregados, porque empregariam alguém sem aptidões?
Foi
com alívio que viu que, de má vontade ou não, tencionava dar-lhes de comer. Pelo
menos encheria a barriga por uma vez e mal seria que não as deixasse passar ali
a noite, era tarde e lá fora a tempestade aumentava de tom. Bem comida e com
uma noite bem dormida, as coisas talvez parecessem menos trágicas de manhã.
De repente, reteve o fôlego. A filha virara-se, claramente pouco confortável no velho e estreito sofá, ficando agora deitada de costas. E numa das suas idas ao armário que lhe servia obviamente de louceiro e despensa, o pai parara de chofre, ficando a observá-la. Depois, da última prateleira do armário, tirou uma manta que mesmo de longe parecia bem fofa e quentinha. E, com todas as cautelas, aconchegou-a em torno da neta de dois anos que nunca vira e que tanto se parecia com a mulher que adorara e cuja morte o transformara numa espécie de zombie, sem vontade ou emoções.
Luísa Lopes
0 comentários:
Postar um comentário