Estava
de cabeça baixa, alheio, e fui surpreendido por uma mão pesada que tocou o meu
ombro esquerdo. Era Ernesto, com a sua incrível disposição para o tumulto. Logo,
da sala se fez ouvir a sua voz cavernosa, pelo que pedi que amenizasse o tom.
Ele não me deu os pêsames; como de costume, profundamente indiscreto e curioso,
quis saber a razão da morte. Não sei que morbidez é essa das pessoas se
interessarem tanto na causa mortis. Querem encontrar alguma
justificativa, perversão oculta, é isso? Disse a ele que não tinha ideia. Eu
havia sido informado do fato há pouco mais de cinco horas. No fim da noite,
João, nosso amigo em comum, ligou para me informar sobre o ocorrido, que o
corpo de Nara teria sido encontrado por um familiar, já em estado de
decomposição. Pelos cálculos, segundo o legista, teria morrido há dois dias. A
causa ainda era uma incógnita. No tempo em que namorávamos, a minha preocupação
era com o cigarro: ela fumava um atrás do outro. Segundo João, ela teria
diminuído sensivelmente o consumo, por uma gravidade adquirida no pulmão, de que
ele não sabia precisar. Lembrei, automático, de nossas caminhadas no Parque Rio
Branco, nos sábados e domingos à tarde, em que ela pedia arrego, alegando
extremo cansaço. Afora isso, Nara tinha receio de ir ao médico – decerto por
medo de desvendar uma doença fatal. Sim, ela tinha temor da morte prematura;
sua mãe morrera de um mal súbito aos vinte e oito anos. Nunca usara drogas na
minha presença, a não ser maconha (que não considero droga) e uns comprimidos
para ansiedade. Ela era craque em abandonar terapias. Sendo doutora em Artes,
alegava que os psicólogos, pelo menos os que ela teria consultado, eram
“fracos”, mal entendiam de filosofia. “Como pode, Júnior, filosofia é a mãe das
ciências!”, falava exaltada e cansada de uma tal peregrinação, até que
encontrou o Dr. Augusto Proença, psicólogo e professor universitário. Após, não
sei se por excitação dos sentidos, Nara pediu um tempo e logo acabou o
relacionamento. Nunca falou, mas talvez me achasse mínimo para a função de seu
acompanhante – em se tratando de estudos, só fiz uma pós-graduação em Estética
da Arte… Quando voltei a mim, Ernesto insistia que a morte de Nara teria sido por
problema no coração, que uma vez ela se queixou de dor no peito – ora, pelo que
sei, Ernesto era um “amigo” ausente, não era de ligar ou marcar encontro,
sempre esteve muito ocupado com as suas finanças. Levantei-me e fui ao
banheiro, para me safar do inconveniente. Foi o momento em que vi, de relance,
o rosto de Nara. Estava inchado, e a pele aparentava estar muito fina; um balão
d’água prestes a explodir. Já não era Nara. Passei um longo tempo chorando no
banheiro, pensando que poderia ter feito algo. O namorado de Nara, segundo
soube dias depois do sepultamento, alega união estável e quer ficar com o
apartamento. Ela conhecera o boa bisca há somente cinco meses. Julgo que por
carência e bondade excessivas, até ingenuidade, porque ele alegava dificuldades
financeiras, colocou-o em casa, razão que a fez discutir com a mãe, e não mais
se falavam. A família de Nara pediu na Justiça a reintegração da posse e uma
nova exumação/perícia do corpo. Meu Deus, que sufoco, só peço a que deixem em
paz.
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