Era no tempo em que os animais falavam. As espécies tinham-se espalhado pela Terra, ocupando todos os nichos passíveis de sobrevivência. As predadoras caçavam as outras, ocupavam-lhes o território e ficavam por ali a acasalar, a multiplicar-se e a banquetear-se com os corpos estraçalhados das presas que iam apanhando, de cada vez que a fome rosnava. Se os indivíduos das espécies alimentícias se tornassem escassos para as necessidades de uma espécie predadora, esta migrava para territórios mais abundantes em caça.
Esta fábula conta a história dos Breus e dos Listeus, raças muito semelhantes de bípedes caçadores, ferozes e territoriais, aparentados com as hienas. Talvez por serem bípedes, ambas as raças se reclamavam de terem os Homens como ascendentes primordiais e emulavam os seus mitos e as suas formas de organização.
O encontro destas raças, em tempos distantes, foi dramático e sangrento: os Breus, incapazes de prevalecer na zona que habitavam, ocupada por uma raça mais bem adaptada, migraram para uma zona prometedora que os adivinhos indicaram e resolveram instalar-se. O facto de o território já estar ocupado pelos Listeus não constituiu um dilema: atacaram-nos massivamente, matando-os onde quer que os encontravam. Não era para comer; era só para desocupar o território da raça rival. Apesar das aspirações humanas, mantinham a animalidade intacta.
Reagindo às matanças substanciais, os Listeus sobreviventes organizaram-se e deram combate aos invasores. Iniciou-se assim um guerra de limpeza étnica mútua, que foi produzindo extensos morticínios de ambos os lados. A posse completa e indivisa daquele território justificava todos os sacrifícios. Era uma posse que cada raça tinha como promessa associada à mitologia das origens humanas. À vontade de o possuir, juntava-se, com toda a veemência, a ordem divina. Mais do que uma necessidade, era uma obrigação.
Então, cada raça já se tinha estruturado política e socialmente e ia organizando estratégias para suplantar a inimiga, mas nenhuma conseguia o intento assumido de eliminar por completo a outra. Muitos massacres mútuos depois, sem se revelar um claro vencedor, chegou-se a um período de beligerância de aparente baixa intensidade, em que a demografia apareceu como arma a não ser negligenciada. “Se muitos dos nossos morrem nos confrontos cíclicos, há que fazer nascer muitos outros, para que o inimigo nunca consiga fazer-nos extinguir."
A guerra quente continuou a estalar a intervalos. Produzia um massacre, que era depois retaliado exponencialmente pela outra raça, até se chegar a novo período de cansaço. A escravatura foi surgindo, aqui e ali, como estratégia de sobrevivência para os vencidos e como mais-valia para os vencedores. Então, as proximidades entre vencedores e vencidos, embora assimétricas em termos de poder e direitos, criavam tolerâncias, cumplicidades, até amizades, numa espécie de promiscuidade rácica. Era a coexistência possível, que, às vezes, imitava e dava a ilusão de uma sociedade igualitária, mas que não era vista com bons olhos pelas castas dominantes de cada raça.
Conta-se que, certa vez, muitos anos depois dos enfrentamentos iniciais, uma fêmea breia foi queixar-se a Fauce, o governante local, de que uma sua escrava, cuja cria tinha morrido, estava a tentar apoderar-se da cria da dona, a sua. E arrastara perante o soberano a fêmea listeia, que carregava às costas uma cria com poucas semanas de vida. O governador, assumindo as funções de juiz por inerência, em atitude grave, mandou que ambas defendessem a sua razão, apesar de uma ser dona e breia, e a outra escrava e listeia. Havia que manter uma aparência de justiça.
Cada uma defendeu a sua maternidade com toda a veemência. Não parecia fácil aquela decisão. Em pé, perto de Fauce, o vizir aproximou-se do rosto daquele e ciciou-lhe qualquer coisa ao ouvido. O dirigente, embora em atitude judiciosa, assentiu ligeiramente. Lembrava-se bem do episódio evocado pelo vizir e da decisão do seu antepassado humano, que fazia parte da jurisprudência dos decisores daquela raça. Após meditar um momento, mandou chamar o carrasco e ordenou-lhe que talhasse a cria em duas partes iguais, “para que nenhuma mãe receba mais do que a outra”, como fizera o antigo governante humano.
Logo a fêmea listeia se lançou ao chão, pedindo que, em vez de tão sábia decisão, a cria fosse entregue à fêmea breia.
Estava encontrada a verdadeira mãe. Só a mãe real teria tal atitude de salvamento da cria, como bem deduzira o humano que Fauce emulava.
O antepassado mítico entregara a cria à verdadeira mãe, mas, e agora? Entregar a cria listeia à fêmea listeia? Nada de mais insensato. Havia que estar atento a muitos aspetos. Os tempos iam lassos, mas não se podia perder de vista o plano inicial. Chamou o vizir e perguntou-lhe se tinha alguma informação importante sobre o caso. “É muito provável que a cria seja filha do macho da breia”, informou ele, em surdina.
Fauce voltou a baixar a cabeça, em aparência de trabalho de justiça. “Nada de relevante. Entregar a cria à fêmea breia? Filho de mãe listeia, ainda que filho de pai breu e criado pela fêmea breia, sempre manteria a semente da insurreição listeia”, concluiu para si. “Pior: como mestiço, poderia vir a arvorar-se em paladino da concórdia das duas raças.” E, com um sinal inequívoco para o verdugo, indicou: «Corta!».
Enquanto o sangue da cria espirrava, sob os uivos da fêmea listeia e o silêncio apaziguado da fêmea breia, o governante, na pose solene que a dignidade do cargo exigia, confortava-se com o orgulho do dever cumprido. Por agora, era um animal, com um plano a executar. A humanidade fazia parte do mito, mas podia esperar.
Joaquim Bispo
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Imagem:
Almada Negreiros, A Sentença de Salomão, tapeçaria, 1962.
Tribunal Judicial de Aveiro.
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2 comentários:
Uma história sabiamente enquadrada no espírito dos holocaustos nos dias que correm.
E tal com nas fábulas de La Fontaine qualquer semelhança com a realidade será pura coincidência
A. Grancho
Obrigado, António.
O fundamentalismo hebraico é tão alucinado e feroz como o hitleriano.
Votos de um 2024 mais gentil para todos nós do que 2023.
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