Em
algum lugar, acima das nuvens, o escritor observa como sempre o fizera quando
circulava pelo nosso mundo. Tudo sempre poderia render uma boa história. Como
afirmava: é dinheiro achado na rua.
Ele,
com argumentação persistente, conseguira sua licença de visão de longo alcance,
permissão que já conquistara na sua vida terrena, pois poucos são aqueles que
conseguem transformar algo do cotidiano num conjunto de sensações, de experimentações
para o leitor.
Eram
muitas as lembranças. Quando ainda se é jovem, não há como saber quanto tempo
dura a missão e muitos escrevem, pintam, cantam, fazem de tudo com a vontade e
a dedicação de quem faz pela última vez. Ele fazia como se fosse a primeira.
Um
de seus textos poderia ter sido a sua última crônica, um último sentimento
experimentado. Se o fosse, teria valido a pena. Pensar no sorriso da menina de
cabelo crespo era uma doce lembrança. Quando a escreveu limitou-se ao relato,
como um bom narrador-câmera. Não falou das próprias sensações: como era gostoso
aquele bolo amarelo-escuro, sabor felicidade. Ainda bem que não foi a
derradeira, nem nunca será, pois mesmo a distância, sopra suas histórias nos
ouvidos daqueles que procuram ouvir.
Ao
longo da sua jornada, foram vários encontros marcados. Ali, acima das nuvens,
já não havia toda essa formalidade, mas naquela fração de tempo entre as duas
eternidades, acertou de reunir-se com um velho amigo. Já não tinham mais a
diferença de idade da existência anterior, pois lá não há relógios ou
calendários, nada é relativo.
–
Olá meu Menino! Como está!
–
Não tão bem quanto o senhor, meu Poetinha! Como não tenho o dom do verso, me
resta a prosa.
–
Modéstia sua! Mas bom de verso mesmo é o Chico.
–
Pois é, eu fico observando daqui, esperando uma daquelas letras que fazem diferença.
Em outra ocasião eu me lembrava do texto de “Meu caro amigo” e imaginava o que
ele diria novamente para um amigo distante, quem sabe você!
–
Pior é que ele nem poderia dizer que a coisa lá continua preta, pois poderia
ser mal interpretado. Dizem que lá tudo está ficando muito chato, qualquer
coisa é motivo para intriga.
–
Tem razão, fico pensando se eu lá continuasse escrevendo hoje em dia, teria que
rebolar para evitar confusão. A sinceridade não é mais uma das virtudes
admiradas. Muitos não querem enxergar a realidade, muito embora ela esteja
debaixo do nariz de cada um. Quem sabe eu fosse considerado um preconceituoso,
aí poderia justificar dizendo que sou apenas um mentecapto, como tantos outros.
–
Falando em adjetivos, lembro de uma vez que lhe perguntaram se você era um
mentiroso.
–
Foram várias vezes. Sempre respondi que eu inventava alguma coisa para que as
pessoas pudessem perceber a realidade. A realidade é que é muitas vezes
mentirosa, eu apenas abusava um pouco da licença poética.
–
Como seria você escrevendo suas crônicas e concorrendo com um youtuber de visão míope ou
mal-intencionado?
–
No final dos anos 1980 eu afirmava que a comunicação suplantou a expressão.
Hoje eu poderia dizer que a expressão, principalmente a literária, sucumbiu.
–
Talvez a poesia também!
–
Quem sabe eu seja um tanto purista, mas como sempre afirmo: há mil maneiras de
dizer uma coisa e só uma é perfeita.
–
Muitas vezes a mais simples, mas não a banal.
–
Sinto uma certa saudade do tempo em que eu achava dinheiro na rua. E só achava
porque ia para a rua, vendo onde os outros não viam, sentindo o que não sentiam,
para depois fazer com que experimentassem as próprias sensações que antes ignoravam.
–
Sabe, meu sujeito que nasceu homem e morreu menino, até hoje não acredito que
nos permitiram ficar por aqui. Fizemos coisas boas, mas não fomos santos.
–
Como eu sempre digo, é a “graça de Deus”. Ainda bem que ele também tem bom
humor!
–
Por isso ainda podemos “trocar figurinhas”. Eu queria poder ver o que acontece
lá embaixo como você. Mas me diga, quando observa, olha mais para o Rio ou para
Minas?
–
Minas ainda me acompanha, onde quer que eu vá. Minas está aqui neste banco,
comigo, mas é claro que observo outros pontos.
–
Você voltaria para lá?
–
E deixar a turma toda aqui? Nem pensar. Foram os amigos que fizeram valer a
pena viver, como neste solene momento. Continuo esperando, pois tem uns
teimosos que lá ainda continuam. Ainda bem que há quem acredite na literatura
como forma de transformação, de evolução da sociedade. Eles, alguns dos
mineiros, por exemplo, mantém vivo um evento: distribuem milhares de livros de
graça, numa das praças da cidade. Precisa ver, tem gente de todo tipo, de todas
as idades. Um livro ou uma história continuam fazendo diferença na vida das
pessoas. Tem paciência para ouvir a narrativa de uma das minhas observações?
–
Claro!
Logo
cedo havia muito movimento na Praça de Santa Tereza. Os últimos trabalhos de
montagem dos brinquedos, a colocação das cadeiras sob as tendas, milhares de
livros foram desembalados e colocados nos pontos de distribuição. Os autores do
livro infantil num bloco de tendas, os do livro para os mais crescidos no
outro.
Em
pouco tempo, a praça ficou lotada de gente. A grande maioria, curiosa com as
histórias, abria de imediato o livro. Começavam a ler em pé, sentados ou mesmo
andando para lá e para cá.
As
filas para os autógrafos logo cresceram. Um verdadeiro ponto de encontro,
muitos deles não marcados. No meio de gente experiente havia um novo velho
autor de contos. Ele estava muito feliz por estar entre os autores do livro,
mas ainda se sentia inseguro em relação à qualidade de seus textos, pois entre os
leitores que buscavam um autógrafo ou um bate-papo com os autores estavam
escritores de renome, jornalistas, pessoas influentes da sociedade mineira. O
que dizer para gente que conhecia tanto de um mundo para ele ainda pouco debatido.
Mais
da metade da manhã havia passado. Ele lembrou que precisava ir ao banheiro,
havia alguns instalados num outro ponto da praça. Passo apertado apontou para
uma das portas. Não havia dado dez passos quando percebeu uma senhora que
chamava pelo seu nome. Ela se aproximou e foi despejando:
–
Foi você quem escreveu o conto da página 11?
–
Sim, fui eu.
–
Sabe, hoje saí de casa um tanto desanimada, parecia carregar o peso do mundo. Resolvi
caminhar, sem rumo. Eu não lembrava que haveria um evento na praça. Quando vi o
movimento foi que recordei a fala da minha sobrinha sobre o trabalho do pessoal
da montagem dos equipamentos. Resolvi entrar na fila e esperar por um livro.
Quando o peguei, abri de imediato, numa página qualquer. Era a sua história. De
repente, me vi sorrindo, imaginando cada uma das cenas descritas. Há um bom
tempo eu não sabia o que era sorrir. Descobri que ainda posso. Me perdoe por
abordá-lo dessa forma, mas você fez muita diferença na minha vida hoje.
Obrigada! Posso lhe dar um abraço?
O
novo velho autor, ainda sem saber como reagir, retribuiu o abraço. Sorrindo,
ela sacudiu o livro como quem segura um prêmio e saiu, caminhando de costas por
um breve momento, sorrindo. Acelerou o passo como quem volta para casa.
Naquele
dia o novo velho autor de cinquenta e dois anos descobriu uma das missões de
quem narra uma história, declama um poema, canta uma canção ou pinta um quadro:
atrever-se a provocar sentimentos, sensações como rir, surpreender-se, perder o
fôlego de êxtase ou de felicidade. Nem todo mundo consegue.
–
Pois é, menino! Nem sempre quem escreve se dá conta do que é capaz de provocar.
Uma frase, um verso, podem ser transformadores.
–
Quem sabe os encontros não marcados sejam mais marcantes que os programados!
–
Quem sabe! Aproveitando ensejo, vou-me. Nos encontramos por aí! “De repente,
não mais que de repente”.
–
Sem tristeza! “Se em horas de encontros pode haver tantos desencontros, que a
hora da separação seja, tão-somente, a hora de um verdadeiro, profundo e
coletivo encontro”.
–
Verdade. Acho que nos apressamos na despedida. A nossa prosa vai se estender um
pouco. Veja quem vem lá!
–
Olha só! Vem no mesmo pique de outrora, os Vintanistas.
(Texto vencedor do Concurso Livro de Graça na Praça - 2023)
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