A arte da medicina consiste em distrair o paciente enquanto a Natureza cuida da doença.
Voltaire
Escritor, historiador e filósofo iluminista francês
(1694-1778)
Enquanto o grupo reunido por Himono e Kiala se apressavam noite dentro, Erem mandou quatro homens levar o jovem, que se debatia em aflição, para o santuário.
Transportaram o ferido numa padiola, logo seguidos por um dos estrangeiros, de nome Amanur e quase toda a população da aldeia. Passaram pela área ainda não preenchida do círculo que já contava com seis imponentes megálitos. Deitaram-no sobre a pedra que servia de mesa para os sacrifícios e mantiveram-lhe os braços seguros enquanto Zia invocava a atenção de Swol e Mensis.
O céu estava encoberto, mas as franjas das nuvens refletiam a luz forte da lua que brilhava bem acima delas. Não fora isso, estaria uma noite magnífica, de um céu estrelado onde Mensis governava invicta sobre as humildes estrelas, que eram as fogueiras do povo do céu.
O chefe apressou-se a ir buscar a sua cabeça de leão cerimonial e o cocar de penas da mulher. Vários homens acorreram a trazer madeira e fogo para acender no meio do círculo, aos pés da pedra sacrificial frente ao ídolo Swol. A cerimónia teria de ter tudo o que era exigido para obter o favor dos deuses.
Os mais próximos olhavam espantados enquanto Nehir esculpia e aguçava uma fíbula de corvo e utilizava os finos ossos das costelas para esvaziar o interior do osso maior. Em poucos minutos, obteve um pequeno tubo reluzente e afiado, que estendeu em oferta para o céu.
Zia, já devidamente ataviada com o seu cocar de penas de pomba, “cantava” a Swol, enquanto circulava em volta do monólito que o representava. Entoou a história, cantada por pais aos filhos durante incontáveis gerações, do dia em que Manu, o primeiro homem, abriu os olhos. Lembrou aos deuses como Swol e Mensis se apaixonaram por aquele ser indefeso e desceram dos céus para o ensinar a sobreviver sem garras nem dentes temíveis. Como Tharun atirou o fogo dos céus, fendendo em milhares de lascas o Grande Carvalho de onde nasceu o mundo, dando o fogo e criando as lanças para os homens. Lembrou como Swol, cuidou de Manu e usou o seu calor para derreter as neves e florescer as plantas e como o seu brilho atraiu os animais de todos os tamanhos e feitios para que ele se alimentasse. Cantou sobre Mensis que se transfigura no céu noturno e que vela sobre a noite, trazendo a luz sobre a escuridão e o poder sobre os espíritos das sombras.
Depois estendeu as mãos sobre o objeto que a filha lhe apresentava e invocou os nomes Da Pater e Da Mater[1] para que guiassem a mão de Nehir. Em seguida, pegou de num cesto de vime fechado, uma pomba completamente cinzenta e, após a exibir aos céus por poucos segundos, torceu-lhe o pescoço sem cerimónia.
Um dos homens estendeu uma pequena taça de barro a recolher o sangue que a sacerdotisa vertia ao abrir ao meio a ave sacrificada.
O círculo exterior do santuário estava preenchido por um enorme grupo de homens e mulheres, agora que se lhe juntavam os elementos da responsabilidade de Tailan. Erem, com a cabeça de leão sobre a sua, conduzia-os num som gutural grave, que fazia vibrar o peito e os próprios menires, ritmando com o bater de uma grossa vara numa pedra e acompanhado por alguns homens que ressoavam peles esticadas sobre quadrados de madeira.
A sacerdotisa tomou a taça com o sangue e aspergiu o ferido que se debatia cada vez com menos intensidade. Depois pintou uma linha vermelha no rosto do paciente desde o queixo até ao cabelo, dividindo-o ao meio e exclamou: — Em nós, existem Swol e Mensis, o rei do dia e a rainha da noite. Unidos no nosso corpo como um só! — Repetiu a linha vermelha no rosto da filha e incentivou: — Que os deuses guiem a tua mão!
Perante o olhar estarrecido de Amanur, Nehir, sussurrando o encantamento da cura, colocou a mão direita atravessada desde o queixo do moribundo cobrindo todo o pescoço. — Agarrem-no bem. — Avisou, enquanto com a esquerda, apontava a agulha de osso que preparara na parte mole logo abaixo da área tapada. De olhos postos no céu, que começava a ganhar cor, invocou a ajuda divina: — Swol! Salva o teu filho! Mensis, dá-me o poder da cura — Tornou a atenção para a mão que segura a agulha e, com a direita, deu-lhe uma pancada seca.
Um espirro de sangue aspergiu os mais próximos e no segundo seguinte, o som ofegante do ar a entrar e a sair começou a ouvir-se através da cânula. O paciente começou imediatamente a acalmar-se.
— Da Mater te proteja e mantenha os maus Ansu[2] afastados. — Pediu Nehir colocando a mão sobre a testa do ferido.
Amanur, ainda indeciso se o seu companheiro morria ou estaria salvo, continuava a agarrar-lhe o braço com força, até que a mão do, até aí moribundo, tocou-lhe, indicando que o magoava. Olhou para o rosto de Tibaro onde a tonalidade cinzenta começava a desvanecer-se. Os olhos dele estavam novamente abertos e vivos, aparentemente ainda a tentar perceber por onde respirava. A sua expressão exibia sofrimento pelo pescoço magoado.
— Podem deixá-lo. — Anunciou Nehir para todos os que agarravam o ferido. — Swol ajudou-nos por agora, mas os próximos tempos é que dirão se se salva ou não.
— Os outros têm de chegar com a cabeça do auroque antes do nascer do sol. — Zia sussurrou preocupada para a filha, antes de gritar para a audiência com os braços no ar: — Swol seja louvado!
— Swol! — Responderam os presentes em êxtase, fazendo ressoar as suas vozes nas pedras do círculo inacabado.
A curandeira colocou, cuidadosamente, um pouco de mel em volta do novo ferimento para evitar infeções e segurar a agulha de osso que lhe permitia respirar. Depois untou-lhe o pescoço com uma pasta de urtiga e lavanda para reduzir a dor e a inflamação.
— Vai viver? — Perguntou Amanur, quase para ninguém em especial.
— Está salvo para já. Mas não pode falar e só poderá beber, não comer. Só respira por este buraco. — Confirmou Nehir sobre os gritos de graças dos acólitos. — Temos o mau Ansu[3] que está no pescoço e que o pode matar ainda. Se o tirarmos de lá, daqui a uns dias poderemos tirar o osso que lhe pus. Precisamos da cabeça do auroque. Vem, reza connosco.
— Rezar? — O outro hesitou com um trejeito da boca. — Ao vosso deus? Swol? O nosso é Tarunte, o deus do trovão.
— Também adoramos Tarhun, deus do trovão e da guerra. — Esclareceu Nehir com estranheza. — Mas é Swol, o rei dos céus, quem comanda a vida. Ele salvou o teu companheiro. — Encolheu os ombros e juntou-se ao coro.
Desconfiado, Amanur quedou-se de joelhos junto de Tibaro. O seu amigo estava salvo para já. Seria Swol ou Tarunte o seu salvador? Aquele círculo inacabado de pedras era tão rude quanto intimidante e o ídolo grosseiramente talhado no menir central parecia escarnecer dele.
A curandeira e a xamã mandaram distribuir uma infusão de folhas de secas de papoila e ajoelharam-se, sentando-se sobre a parte anterior das pernas, sempre implorando a ajuda do deus. Todos os presentes colaboravam no som ressonante e profundo que parecia preencher todo o espaço e ressaltar nas pedras.
Rompiam os primeiros alvores da madrugada quando o grupo de oito homens, alagados em transpiração, surgiram no santuário. Quatro deles transportavam a descomunal cabeça segurando-a com esforço pelos longos cornos. Os outros quatro traziam as patas traseiras e dianteiras em cestos de vime. Os gritos de graças, que já duravam há uma eternidade, calaram-se abruptamente. O tamanho do troféu era maior do que alguma vez alguém havia visto.
Alguns homens e mulheres, entorpecidos pela imobilidade e atordoados pelos efeitos da infusão, acudiram a animar o fogo que era pouco mais do que umas pequenas chamas que refulgiam entre os troncos quase consumidos. Gerou-se de imediato uma atividade frenética e curiosidade em volta dos recém-chegados.
Amanur falou apressadamente com Kiala e Himono, apontando alternadamente para Nehir e Zia, contando tudo o que se passara durante a sua ausência. Ambos olharam com espanto para Tibaro e apertaram-lhe os braços com alegria, vendo-o a recuperar as cores.
A Xamã, assim que achou a fogueira digna do sacrifício, reuniu seis guerreiros que com ela dançaram em volta da dos despojos do auroque, pousados no chão aos pés da pedra sacrificial onde estava ainda deitado Tibaro. A cada três passos, apontavam as lanças para a cabeça decepada, simulando atacá-la.
Os gritos de Swol dos assistentes e os de ameaça dos dançarinos, o rufar das peles deixava-os a todos como que hipnotizados, a transpirar e de olhos esbugalhados. Por fim, a um grito de Zia, com as mãos erguidas, todos se imobilizaram e o silêncio caiu como uma pedra em todo o espaço. Numa aproximação ritual, Erem, imponente debaixo da temível pele de leão, caminhou rodopiando artisticamente uma clava que desfechou com força na cabeça do auroque.
— Swol! — Gritou Zia. — Salva o nosso irmão! — Como um eco, toda a assistência repetia as suas palavras. — Envia o mau Ansu[4] para junto de Welnos[5]! — Nova pancada com a clava. — Oferecemos-te este ser magnífico, que deu a vida para que o nosso povo não tenha fome!
Com estas palavras, os guerreiros ergueram a cabeça decepada e colocaram-na sobre a fogueira onde começou a crepitar. Zia e Erem colocaram as patas dianteiras da besta a cada um dos lados da cabeça. As traseiras seriam depois atiradas ao rio para que o auroque nunca consiga completar-se e perseguir os seus matadores.
Durante horas, sob o olhar atento dos estrangeiros, homens e mulheres cantaram e dançaram em volta do fogo onde os restos da besta se consumiam, embora alguns desistissem e fossem e abandonando a cerimónia.
Quando apenas já pouco restava identificável na fogueira, eram apenas seis os membros do clã que ainda se mantinham a acompanhar o chefe, a xamã e a curandeira.
Tibaro acabara por adormecer na sua “cama” de pedra coberto com uma pele negra e só quando os cânticos foram substituídos pelas conversas dos resistentes é que despertou novamente. Zia e Nehir ajudaram-no a erguer-se e logo se aproximaram os seus companheiros, que até ali se haviam mantido sentados em pedras a assistir. O paciente foi levado para a tenda de Nehir onde continuaria o seu descanso tão necessário à recuperação.
Erem, visivelmente cansado, despediu-se dos “resistentes” e dirigiu-se para a sua cabana, logo seguido por Zia. Mas os acontecimentos não haviam acabado naquela manhã, onde o sol já ia alto; no largo em frente à sua casa, o cativo jazia, ainda amarrado ao poste, com a cabeça pousada numa poça de sangue e lama. A pouca distância dele estava a pedra que utilizaram para o matar.
Manuel Amaro Mendonça
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