Estou
completamente convicta de que o tempo acabou. Faria sentido se João estivesse
aqui, me ajudando, me dando forças para continuar. Meu único irmão era a minha
luz. Ele continha o segredo do destino; quando me dizia que tal fato daria
certo, sim, acontecia – e vice-versa. Ou será que eu dependia de sua aprovação?
Minha amiga Joana falava de uma carência doentia. “Como pode, Maria, você
deixar ou não de fazer uma coisa por conta do conselho do seu irmão? Por acaso
ele é um deus soberano? Você não tem fé?” – e ela emendava em perguntas
desafiadoras, como a colocar em xeque o poder do meu irmão. Por que esse
vínculo tão forte? Bem, preciso dizer que meu irmão e eu fomos muito pobres.
Depois que nosso pai morreu de tanto beber ele assumiu a família, vendendo
diuturnamente salgados que mamãe preparava. Ele voltava somente quando vendia o
último salgado, cerca de trinta por dia. Houve momentos em que dormia ao
relento, nas ruas, esperando os boêmios comprarem os nossos quitutes. Mais
grandinha passei a sair com ele, complementando as vendas com copos de sucos.
Vendíamos bastante para as firmas, para peões de construção, por exemplo. Nunca
passamos necessidade justamente pela garra e, sobretudo, pela disposição
sobrenatural de meu irmão. Ele não saía de casa antes de prever o que poderia
acontecer. Em duas oportunidades, dizendo que seria assaltado, deixou de ir à
labuta. Acreditávamos. Minha mãe achava que ele era um menino santo. Alguns
moradores das redondezas souberam e começaram a pedir bênçãos em nossa porta.
Ele, de início, abençoava, mas foi se zangando, razão que nos fez ir morar no
outro extremo da cidade, anônimos. Ele não se sentia especial, “apenas um
menino com bons pensamentos”. Era muito positivo e enérgico. Passava sermão em
mim e em minha mãe, para que não nos fragilizássemos com as desventuras, porque
“o dia de amanhã será sempre melhor” – e era. Com o tempo, formou-se no ensino
médio, pelo EJA, e depois começou a fazer faculdade em administração. Logo foi
empregado em uma grande firma de software. Era o mais competente
vendedor. Mudou as nossas vidas. Forçou-me a estudar e pagou a minha faculdade
em enfermagem. Concluí os estudos e trabalhei longos anos no Hospital Geral,
até cair numa irremediável depressão. Como disse, ele era a minha bússola, meu
guia e meu melhor amigo. Cuidava de mamãe com tanto zelo que me sentia devedora
de sua bondade. Tornou-se dono de um conglomerado de materiais para
informática. A sua empresa é conhecida internacionalmente. Sem dúvida, trata-se
da melhor do Brasil no ramo, e compete com as grandes de fora. Julinha, minha
sobrinha, é hoje a CEO. Viaja bastante e não tem tempo para as minhas queixas.
Ela prefere me mandar uma boa mesada a ter de me ouvir; é um verdadeiro
cala-boca. Quando João Nunes de Alencar morreu, o conceituado magnata cearense,
foi uma comoção geral. O governador decretou três dias de luto. Todos os
órgãos, inclusive estatais, precisavam dele. Antigamente, quando tinha tempo,
foi assessor do governador para assuntos tecnológicos. Foi o principal mentor
do Porto do Pecém. Mas tudo isso há cinco anos não vale mais nada. Para mim, no
testamento, deixou uma quantia razoável para sustentar até a terceira ou quarta
geração, que não tenho. Não me importo com mais do que o suficiente para
sobreviver. Trocaria tudo por sua vida, para que vivesse comigo, fosse meu
eterno companheiro. Joana pergunta por que não invisto ou promovo benfeitorias
para os mais pobres. Já não há mais tempo; as energias se esvaem com a pobreza
da minha alma. João é o meu digníssimo cúmplice. Sonho com ele todas as noites,
me acariciando, me amando. Resta o vazio. Não conto as horas para encontrá-lo,
e devorá-lo, na nossa eternidade.
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