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quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Oração

 



Tantas sensações contidas, nesse corpo-fármaco, comprimidos. Todo dia penso que será o último. Não me agarro a uma ilusão de esperança. Somos todos instantes. Breves silhuetas no tempo – que bonito! Breves traços que se apagarão. Você, por exemplo, sabe o nome do seu tataravô materno? Não sabe e não tem vontade de saber, a não ser se for preciso para constar em prova de pedido de cidadania em um país europeu – eu sei porque o fiz. Imortalidade é uma ficção da ingênua e volátil cognição humana. A fatalidade é ser normal, nesse mundo insano, onde as pessoas se comem, roem mutuamente os ossos por dinheiro – sim, há quem diga que é normal! Com cinquenta e dois anos, acho que tenho algum parâmetro. Trabalhei em uma dezena de empresas. Todas com a mesma equação: “Trabalhe (morra), para que eu goze e cuspa na sua cara, depois – bem depois –, quando tiver dado as suas contas, seu inseto indigente”. Isso eu li na testa de um chefe que se pintava magnânimo, mas que me olhava dos pés à cabeça com desprezo, como sendo um objeto servível aos seus interesses. E fui. Reificação. Era preciso trabalhar dopado e, mais tarde, triplicar na dose para dormir. Dizem que perdi o meu casamento por isso. “Você foi egoísta, Inácio… Não pensou na carência de sua mulher?”. Lembro da voz de Diógenes, meu irmão, um sábio capitalista dos trópicos, dessa vassala republiqueta. Mandei-o à merda depois. O casamento entrou numa espiral de desconfiança e cobrança. Despachei-a, com delicadeza, pensando em cortar os pulsos logo após a sua saída. Ela me deixou com uns farrapos. Mas não me importava, porque prontamente estaria morto. Fui covarde. Não dei início ao sacrifício. Deveria entregar o meu corpo às divindades coprófagas. Morro e morro a cada dia, iludido com o fim premente, com a expectativa de redenção (da vida) ou simplesmente de apagamento. “Nunca passei por essa terra imunda”. Que os porcos se saciem com as suas lavagens. Que os políticos sejam depurados e santificados pelo fio da navalha, como antigamente. Que os poderosos sejam comidos por dentro, numa infestação lenta, espetacular, de bichinhos necrófagos. Que eu possa saudar o meu fim. Que meus pais e meus filhos, que nunca existiram, tenham piedade de mim. Que seja crível a decrepitude da alma. E que, de modo especial, o fim seja o começo da extinção de tudo que está e que eu sei conscientemente.


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