Não consegui sufocar o
sentimento. Procurei evitar o quanto pude encontrá-la nos braços de outra
pessoa. Mudei de cidade, de emprego. Me anulei como homem, eu não conseguiria
amar outra mulher. Concentrei-me apenas em sobreviver, vegetar. O trabalho era
minha fuga, o sono também.
Poderíamos ter vivido tantas
coisas, juntos. Eu queria fazê-la feliz. Não consegui. Que o outro conseguisse,
então. Era o que eu desejava, mesmo lutando contra os sentimentos que me
consumiam e faziam arder o peito quando uma lembrança dela me vinha à mente.
Eliminei o telefone dela da minha
agenda. Cancelei minhas contas nas redes sociais, criei um novo endereço de
e-mail. Pensei que ajudaria em meu isolamento. Eu seria apenas mais um vagando
pelas ruas de uma grande cidade, desconectado do passado. Um antidepressivo me
mantinha, de certa forma, desligado. Afastado dela e de tudo, levado pelo
vento, pelo movimento do mundo. Sem reação, sem emoção.
Várias vezes me peguei procurando
pelo seu contato nas páginas das redes sociais. Felizmente consegui resistir.
Jejuns me mantinham firme ao propósito de não a procurar. Passei a me
penitenciar cada vez que um vago pensamento insistia em renascer.
Tudo seguia como planejado, até aquele
maldito dia. Estação da Sé do metrô, dezoito horas. Eu precisava fazer uma
conexão para a minha linha. A porta se abriu. Na multidão que saia, estava ela,
abraçada ao companheiro, carinhosamente. Saíram involuntariamente, empurrados
pela massa que se deslocava, voltaram colados a mim, pressionados pela multidão
que entrava. Com meu peito junto ao seu rosto, olhei nos olhos dela, que
baixaram evitando um cruzamento. Pude sentir o seu perfume, o mesmo que
impregnava o meu corpo nos momentos mais ardentes. Ela apenas me ignorou,
abraçou-o mais fortemente. Ele, não percebeu o que ocorria, apenas beijou sua
testa.
Esforcei-me para ganhar algum
espaço, espremido no vagão, até que consegui dar as costas aos dois. Decidi
descer na estação seguinte. Percebi seu olhar pela janela do trem que partia.
Não parecia triste, tinha apenas uma expressão de dó, pena. Senti-me o último
dos homens. Foi como se um fio de arame cortasse o meu cérebro de lado a lado.
A dor persistiu ainda por muitas horas. A lembrança, por meses.
Entre tantos milhões de pessoas
nesta metrópole, por que tive que encontrá-los? O que mais incomodou-me foi
perceber o quanto segura se sentia nos braços do sujeito. Eu que tentei tanto
protegê-la!
Minha estratégia havia falhado.
Perdi o sono, faltou-me concentração no trabalho. Não encontrei mais a paz que
eu supunha ter. Na memória, cenas dela, nua, deitando-se sobre mim. O sorriso,
o brilho no olhar, a declaração de amor. Como tudo isso foi acabar?
A voz dela ecoava em minha mente:
“não pude mais esperar, você não teve atitude!”. Havia tantas coisas que me
prendiam a uma outra vida, a um outro relacionamento. Ela não compreendia.
Eu não conseguiria viver sem ela.
Não enquanto ela existisse.
Procurei um lugar distante.
Encontrei uma caverna, mata fechada. Havia um ponto de pesca, também era
possível caçar. A água pura de uma queda d’água mataria a sede. Comprei um
conjunto de arco e flecha. Eu já havia tido um a boa pontaria nas disputas da
juventude. Minhas flechas certeiras provocariam morte sem dor. Também levei
alguns suprimentos e ferramentas, o necessário para que eu pudesse me adaptar
para viver melhor, longe de tudo.
Enterrei-a debaixo de uma grande
árvore, com ela os objetos que poderiam lembrá-la. O vestido do primeiro
encontro também. Na árvore gravei o seu nome, não o meu. A chuva que caia,
parecia mistura-se ao que restou dela e lavava as minhas mãos, tirava a minha
culpa.
Cavei uma outra cova ao lado da dela,
porém não tive coragem de tirar a minha vida. Joguei-me no fundo da vala. Lá
passei três dias de olhos fechados, esperando que a morte decidisse me levar. Apenas
servi de aperitivo para formigas e outros insetos, nada aconteceu. Na quarta
noite, ela surgiu em meus sonhos, me estendeu a mão e me tirou lá do fundo.
Depois, desapareceu, mergulhando na escuridão.
Eu a vigiaria permanentemente,
sentado na pedra que rolara morro abaixo no último temporal.
Enganei-me quanto a esquecê-la.
Mesmo após orar por ela todas as noites, minha amada surgia em meus sonhos e me
perguntava por que eu havia feito aquilo. Chorava e implorava para que eu a
libertasse. Gritava de dor, murmurava meu nome. Mas eu não sabia como fazê-lo.
As dores me destruíam. Eu não
reconhecia minhas mãos, não tive coragem de olhar o meu rosto no reflexo das
águas. O tempo foi passando e acabei esquecendo quem eu era. Também não
lembrava por quem eu chorava. Por entre as pedras que cobriam aquela cova,
surgiam cabelos negros, que cresciam dia após dia. A árvore secou, caiu,
apodreceu. Quando chovia, a água que caia misturava-se ao sangue que
extravasava da sepultura, manchando de vermelho a nascente de água de onde eu
bebia. A cena não me assustava mais. As vozes sim.
Pensei em escavar a sepultura.
Mas quem estaria ali. Não havia cruz, nem nome. Era uma mulher, havia uma
pulseira pendurada no galho seco fincado na cabeça da cova. Apenas uma inicial:
M.
Peguei meu arco, algumas flechas
e decidi sair dali. A voz continuava ecoando em meu pensamento. Eu precisava libertá-la,
mas não sabia a quem, nem como. Eu precisava encontrá-la.
Na trilha ouvi vozes. Um grupo se
aproximava. Escondi-me e observei. Logo partiriam, não mexeriam comigo. Só
prejudicariam a minha caça por um tempo. Estariam armados? Por segurança, preparei
meu arco. Já fazia muito tempo que eu não falava com ninguém. Será que ainda sabia?
Dois deles se separam do grupo e
foram até uma queda d’água próxima. Resolvi segui-los. Tiraram a roupa,
banharam-se, depois sobre uma pedra aquecida pelo sol, faziam sexo. Resolvi
aproximar-me, eu parecia reconhecê-los. Perceberam minha presença e ficaram em
pé. Sim, eu conhecia aquele corpo, o rosto um pouco mais velho, os mesmos
longos cabelos negros.
Procurei certificar-me. Sim, era
ela, a mesma mulher que em meus sonhos pedia liberdade. O rapaz, o mesmo que a
abraçava naquele vagão de metrô.
Tudo aquilo precisava acabar.
Preparei duas de minhas flechas. Seriam disparadas rapidamente, sem tempo para
reação. Não havia como errar. Eu a libertaria, eu me libertaria.
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