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sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Incógnito

 


Outra vez? Parecia que havia épocas em que tudo se desarmonizava. Era o terceiro dia que Álvaro se deslocava ali, ao pavilhão da farmácia do Santa Maria, para levantar medicamentos. No primeiro, esperara uma hora em vão. Dos 72 números que faltavam para ser atendido, ainda restavam 40 quando desistiu.

No dia seguinte, foi um pouco mais cedo, disposto a enfrentar duas ou mais horas de espera. Até podia dispor de cinco ou dez, percebeu então: os farmacêuticos hospitalares estavam de greve e os Serviços Mínimos só lhes permitiam atender casos urgentes. Por isso se acumulara tanta gente no dia anterior.

“Hoje” sofria o mesmo mal: os atrasos anteriores e a promessa de futuros dias de greve tinham voltado a encher a sala de espera da Farmácia hospitalar, que era também a sala de espera das Colheitas de sangue. O dia quente e os 60 números de espera no meio daquela multidão ameaçavam transformar a manhã de Álvaro numa bizarra experiência de sauna ibérica, apesar do ar condicionado.

Saiu, à procura de um recanto sombreado no recinto hospitalar onde pudesse entreter-se a fazer um sudoku, mas os bancos estavam todos ao sol e ficar encostado a um muro mais de uma hora, e de pé, não era uma perspetiva agradável.

Então, lembrou-se das salas de espera de outros serviços. Ali perto, estava o acesso à sala de espera da Pneumologia. Espreitou e, confortado, verificou que havia vários lugares vazios. Entrou, escolheu um, perto de um canto, e embrenhou-se na sua paciência. O ar condicionado dava um conforto extra. Perfeito! Não incomodava ninguém e, daí a três quartos de hora, iria verificar o “andamento” da Farmácia.

Antes de se abstrair totalmente, tomou consciência de que estava ali completamente incógnito. Num serviço que nunca precisara de frequentar, ali ninguém o encontraria. Como se estivesse num ermo beirão.

Uns dez minutos depois, a surpresa: «Álvaro Inês Trancoso Rebordão — gabinete 14».

Pela mente do convocado perpassou um filme acelerado de possibilidades, como aqueles a que as pessoas prestes a afogar-se dizem assistir. Como era aquilo possível? Em que sociedade vigiada é que vivia para aquilo acontecer? Seria a CIA? O SIR? A Organização Hospitalar, se é que existia?

Acreditou perceber o que acontecera. Embrenhado no seu sudoku, entendera como seu nome outro parecido. Ainda mal decidira esperar, quando o altifalante retiniu a voz masculina clara: «Álvaro Inês Trancoso Rebordão — gabinete 14». E, logo a seguir, a habitual voz feminina gravada: «A 67 — gabinete 5».

Percebeu então que a chamada nunca era feita pelo nome. Invadiu-o um incómodo meio-assustado. Por uns segundos, pensou sair dali, afastar-se como se não tivesse ouvido nada. Mas depois racionalizou. Não sentia que tivesse motivos para recear alguma coisa. O melhor era tentar perceber o que se estava a passar. Até para matar a curiosidade.

Avançou pelo corredor, conferindo os números. Do lado direito, o gabinete 14. Bateu e entrou. Em pé, um tipo sorridente de bata, com um estetoscópio ao pescoço — o identificativo tácito da qualidade de médico.

— Bom dia, doutor. Chamaram-me, mas deve ser engano… — o seu rosto pedia explicações.

— Viva, meu alferes! Há mais de 50 anos que não o via! — respondeu o médico, enquanto estendia a mão para o aperto forte, reforçado com a mão esquerda. — Tá bom?

Álvaro sentiu que se revelava instantaneamente grande parte do mistério que envolvia a situação. Seria um médico militar? Mas, da mesma idade?

— Já não se deve lembrar de mim — continuou o médico —, mas eu nunca esqueci o seu nome. Eu sou o furriel Marques. O Catarino Marques. Estivemos ambos em Lanceiros, lá por 70–71.

— Ah, olá! — fez Álvaro, sem ter a mínima ideia de quem aquele tipo dizia que era. — Tudo bem?

— Antes de mais, meu alferes, deixe-me fazer uma coisa que tenho desejado intensamente fazer estes anos todos: pedir-lhe desculpa.

Perante o olhar perplexo de Álvaro, o outro explicou-se:

— Eu saí no princípio de 72 e, naquela altura, naquele contexto, era uso — uma espécie de praxe invertida e tardia — sacar tudo o que fosse possível, do quartel, dos outros, sobretudo dos oficiais. Eu levei várias malas de coisas que consegui sacar, deste e daquele: umas botas, uma máquina de barbear; montes de tralha. Lembro-me de abordar o meu alferes, que, na altura andava a estudar Psicologia, e pedi-lhe livros. Disse-lhe que era para ler nos primeiros tempos de “peluda”. Quero, finalmente, pedir-lhe mil desculpas.

— Ah! Foi você? — lembrou-se vagamente Álvaro. — Eu vinha de um ambiente familiar e de uma atitude de candura aldeã, em que tinha dificuldade em dizer que não. Você “endrominou-me” bem! Eu a querer saber quando e onde é que mos devolvia e você a dizer que mos dava quando eu passasse por Coimbra e fosse a determinado sítio indefinido.

— O meu alferes era um grande totó, desculpe o termo. Mas eu nunca mais me esqueci desse episódio. Tenho os livros lá em casa, nunca me desfiz deles. um é o “Psicopatologia da vida quotidiana”, outro “A interpretação dos sonhos”, ambos do Freud. Sei bem onde estão, muitas vezes li o seu nome no início e quero devolver-lhos. Até já cheguei a fazer diligências para o encontrar. Eis senão quando, passo pela sala de espera e o vejo ali num canto, sossegado como sempre. Resolvi chamá-lo pela intercomunicação, para falarmos mais à vontade. As minhas desculpas, mais uma vez!

— Ah, tudo bem. Eu até desisti da Psicologia.

— Não diga isso, meu alferes, que me afunda em remorsos — agitou-se Catarino, com o rosto perturbado.

— Não, não; não teve nada a ver! Desisti uns anos depois, porque o ISPA era só discussões administrativas e nada de conseguirem que o curso de Psicologia fosse reconhecido oficialmente. E não me trate por “meu alferes”, doutor.

— O peso do sistema de classes militar que nos inculcavam não é fácil de desfazer. E este encontro fez-me reviver aquele contexto castrense. Já agora, não me chame doutor. Na verdade, não sou médico. Tirei Psicologia Clínica. Já jubilei, mas venho aqui pontualmente dar apoio à Mitigação do tabagismo. E estou convencido de que foi por causa daqueles livros que fiz o curso. Tive curiosidade, aquele da Psicopatologia da vida quotidiana criou-me o gosto pelas temáticas de Psicologia... Como as coisas são…

— São mesmo… Tens visto alguém daqueles tempos?

— De longe em longe, vou a uns almoços. Quer aparecer no próximo? É dia 29 em Belém.

— Hum, sou pouco de convívios. Mas gostava de falar mais contigo. Estás sempre por aqui?

— Sim… acho que sim. Mas esses dedos indicam que o meu al…, perdão, o Álvaro tem tudo a ganhar em frequentar a Consulta anti-tabágica aqui do hospital. Inscreva-se! Ajudá-lo seria a maneira de eu conseguir ultrapassar, de maneira airosa, aquele remorso de que lhe falei.

— Já tentei deixar de fumar várias vezes, sem êxito. Primeiro terias de conseguir convencer-me, porque agora já nem sei se quero!

— Para o “endrominar”, pode contar comigo! — assegurou, de sorriso aberto.

Joaquim Bispo

*

Imagem: Gaetan, Contra mundum, 1988.

Coleção de Arte Contemporânea do Estado, Museu de Serralves, Porto.

* * *

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4 comentários:

Gosto muito deste género de contos em que duas pessoas se encontram por acaso e se conheceram no "passado". Tenho vários episódios semelhantes na minha vida, feita de conhecer muita gente, como consequência da actividade que exerci e dos cerca de 46 meses que estive no serviço militar nos distantes finais dos anos 60. Talvez um dia me decida dá-los à escrita.
Parabéns pelo enredo.

Obrigado!
Este episódio é ficcional, embora contenha muitos elementos decalcados do real. E o texto foi desencadeado por outro encontro incrivelmente improvável. Sair à rua tem destes imprevistos.
Não deixe de passar esses episódios a escrito, José Pinto. Torrencialmente. Depois, é só burilar e, quem sabe, apimentar a história com uns pormenores ficcionados. :)

Olá Joaquim
Este teu conto tinha-me passado ao lado, e só agora o li. Que bem construída a narrativa; deu para sorrir várias vezes e, com o condão, de me levar para os distantes anos 70, com a guerra a decepar o início das nossas vidas. Ficaram 3 anos de tropa e o "meu alferes".
Abraço

Muito obrigado, Portugal, pela tua atenção à leitura dos meus textos. Ainda bem que lhes encontras alguma virtude.
Abraço!

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