O Senhor Deus do Universo não estava em nenhum dos seus sete dias, mas Falalael não percebeu o silêncio, ainda por cima abafado pelo ranger das esferas.
— Senhor Deus, estão a acabar as auras de proteção para veículos locomotores singulares, em [Aldebaran] — Falalael emitiu uma fórmula matemática, para identificar o corpo celeste, que seria fastidioso reproduzir aqui. — Lá, estão habituados a usar um amuleto de bolinhas em cada locomotor, o que pressupõe uma aura de proteção associada, mas a nossa capacidade está a esgotar-se. Não do gadget de merchandising, mas da energia protetora. O Senhor não está a pensar em aumentar a capacidade energética na região?
Uma oscilação avassaladora de energia na área indicou que Deus se virara abruptamente, irritado por ter sido interrompido por um auxiliar.
— Ó Falalael, isto não é brincadeira — vibrações eletromagnéticas faiscavam no éter próximo. — Estou eu aqui atento a preparar tudo para que o choque entre estas duas galáxias se faça de maneira coordenada e vens tu com problemas de economato? [Aldebaran], onde é isso?
— Está a 250 aueis, daqui [cerca de 2500 milhões de anos-luz].
— É longe. Agora não posso lá ir.
— E o que é que eu respondo aos responsáveis pela criação de exceções locais às leis da Física, que se veem desacreditados por tantas esperanças de proteção frustradas?
— Olha, inventa qualquer coisa. Por exemplo: espalha a inspiração de que, para além do amuleto, é assisado os utentes fazerem conduções defensivas. Também tens de arranjar soluções, Falalael! Eu não posso fazer tudo.
— Mas, Senhor Deus, há muito tempo que não vai a [Aldebaran]. E a [Betelgeuse]. E a tantos outros mundos.
— Falalael, jovem, criar o Universo foi relativamente fácil, o problema é a manutenção. Aliás, foi mais que fácil; foi involuntário. Estava meio distraído a confecionar maravilhas com um número enorme de elementos; quando dei por ela, estava envolvido por uma explosão colossal. Agora, tenho este berbicacho: um número incalculável de corpos celestes, todos a rodopiar, todos a afastarem-se uns dos outros. É um trabalho danado evitar que comecem todos a chocar entre si, antes de conseguir pôr tudo no lugar, outra vez. Ainda bem que estão a afastar-se: diminui o risco de choques...
— Bem vejo que não deve ser fácil — contemporizou o ajudante.
— Manter estes universos todos a girar continuamente e com suavidade é como um número de equilibrismo de pratos girantes, mas a uma escala... cósmica. Em certos momentos, tenho de estar em todo o lado. E a expansão sempre a complicar as coisas. Estou tão fartinho disto!
— Felizmente, dispõe do dom da ubiquidade.
— Isso é mais fácil de dizer, do que de fazer… Com este tamanho de Universo, nada é fácil. Nem sequer há teletransporte digno desse nome, nem de utilidade mínima. Parece que estou em todo o lado ao mesmo tempo, mas só para quem está desatento. Felizmente, conheço os atalhos. Se tivesse de seguir os percursos lineares da luz, tornava-se impraticável administrar o Universo. A linha reta está longe de ser a distância mais curta entre dois pontos.
— Pois, mas, mesmo assim, há quem fique desapontado. Conta com a ajuda do Senhor, com a presença do Senhor, mas, na hora-chave, ninguém lhe põe a vista em cima. Por um canal de serviço, chegou-me há pouco a notícia, já requentada, de alguém que se dizia filho do Senhor, que chamou pelo Senhor numa aflição, mas ainda não foi dessa que viu o pai.
— Mais um? Mas, que mania! Meu filho, como? Eu só faço originais, não faço cópias. Não tenho tempo para essas atividades multiplicadoras, à maneira das espécies. Nem capacidade. Como é que se cruza o motor do Universo com um animal?
Falalel mantinha-se calado e expectante.
— Já não é a primeira vez. Deve andar por aí quem se faz passar por mim. Talvez seja por causa do estatuto. Onde é isso?
— É também na [Via Láctea]. É aquela, espiral, de quatro braços, com o buraco negro maciço [Sagitário-A] no meio, que roda em sentido progressivo. É lá que gravitam [Aldebaran] e [Betelgeuse], de que falei ao Senhor há pouco. Onde há aquele problema da rutura iminente do fornecimento de auras…
— Parece que só te interessa a [Via Láctea]...
— Eu sei que há biliões da galáxias, mas tenho uma ligação especial à [Láctea] — sou de [Orion], uma constelação da [Via Láctea], e já lá não vou há uma eternidade. Apesar de não ser grande, a [Láctea] contém 100 mil milhões de estrelas e o diâmetro atinge 10 fares [cerca de 100 mil anos-luz]. Tenho orgulho nela.
— Esse tal que se dizia meu filho, como é que ele era?
— Os daquela variedade dizem-se feitos à imagem e semelhança do Senhor. Mas têm corpos e estruturas morfológicas que indicam que evoluíram em ambientes arbóreos — umas estruturas regionais de variação lenta.
— Nas árvores? Porque é que eles acham que eu evoluí, ainda por cima nas árvores?
— Nem ligam uma coisa à outra. Dizem, porque querem à viva força ser parecidos com o Senhor, Deus. É a questão do estatuto, sim.
— Saiu-me cada aberração daquele acidente criador…
— Então, o Senhor não está a pensar passar pela [Via Láctea] proximamente? Aquilo está mal por lá.
— Ah… eles desenrascam-se. Se não… temos pena! Aposto que as árvores se vão aguentar melhor. Assim como assim, é tudo para voltar a amassar!
Joaquim Bispo
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Imagem: Francisco de Holanda, Caos e Criação da Luz, 1545–1573.
In: Das Idades do Mundo — Imagens, FBAUL, Lisboa.
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4 comentários:
Como habitualmente, um texto que se lê com prazer.
Gosto sempre de o ler. Texto humorístico para levar a sério, pois parece ser verdade que a Terra ficará melhor sem nós.
Obrigado, Anónimo.
Obrigado, Anónimo.
Esse cenário de uma Terra sem homens é cada vez mais provável.
A narrativa tradicional de um Deus atento aos pequenos interesses dos homens, parece incompatível com um Universo inimaginavelmente grande.
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