Deitei
a sola na cabeça do vagabundo. Tinha pouco tempo para resolver a parada; antes
que algum benfeitor dos direitos humanos pudesse aparecer e estragar tudo. O
meliante, mendigo, morava na minha calçada há duas semanas. Era um dever meu
enxotá-lo dali, antes que criasse raízes. Dona Gerusa, uma senhora muito
distinta e bem apessoada, não aguentava mais ver a imundice na nossa porta, e o
falava abertamente. “Esse povo, Fernando, não tem o que fazer, vive na
vadiagem!, e fica morando e depositando carniça na escada, na portaria. É cada
podridão que aparece aqui, que eu não sei por que ainda moro nesse que foi o
prédio dos prédios de Fortaleza”. Queria me vingar, por mim e por dona Gerusa.
E, tenho certeza, esse não era um pensamento só meu. Cada morador, dos
dezessete apartamentos, um por andar, detestava a perturbação dos indigentes da
pandemia; pude conferir na última reunião. Rodavam, rodavam, feito galinhas, e,
depois, por sabedoria – que de besta esse povo não tem nada; para levar uma
mamata do governo, são os primeiros –, se alojavam na grande marquise de nossa
entrada. Já estava em andamento a demolição da antiga portaria: no lugar,
seriam colocadas só grades; mas essas coisas demoram, e eu tinha de surpreender
e deixar o aviso para os demais. Acordei com sangue nos olhos, quando atentei
pela janela do quarto a imundície na rua. Engoli o café com tanto ódio que
queimei a língua – mais um motivo para descontar a raiva. Com roupa de casa
mesmo, bem camuflado, desci pelas escadas – moro no segundo andar. Saí pela
parte de trás do condomínio, por uma porta a que só eu, membro do conselho, e
outros dois temos acesso. Levei comigo, para qualquer eventualidade, uma chave
de fenda. Não tinha nada premeditado, mas, pelo menos, um bom safanão ia dar.
Vi o primeiro, dormindo enrolado num papelão. Dei um chute seguro, que
estropiou a sua proteção. Ouvi um grito surdo, baixo, como se lhe faltasse o ar.
Notei que o animal não se mexia. Apliquei dois empurrões, com os pés mesmo:
nada. Dois distintos moradores do bairro passavam e sequer olharam para a cena.
O sujeito agredido estava fingindo demência ou algo do tipo. Para parar de
gracinha, dei mais um belo chute, que fez o meu sapato voar. Corri para pegá-lo
e, por receio do que tivesse acontecido, voltei para o meu apartamento. Às oito
horas, havia dois carros da polícia parados na entrada. Estavam com as luzes rotativas
ligadas, na parte de cima do carro, como se preparassem o palco. Logo chegou
uma ambulância. Não levaram o bandido. Colocaram um saco preto cobrindo o
corpo. Morreu o desgraçado? Molenga! Para ficar na porta dos outros, é o mais
vivo dos homens. Bem, tanto faz. Vou dar um jeito nas gravações das câmeras.
Isso não vai dar em nada.
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