Depois
de dois dias de calmaria, os ruídos lá de fora me trazem de volta a realidade.
Os estrondos das bombas e granadas, o som estridente das metralhadoras e os
tiros surdos dos canhões e dos fuzis nos enlouquecem. O frio de muitos graus
abaixo de zero e a lama formada pela neve e chuva tornam a trincheira um imenso
lamaçal. Não sinto os meus pés, os dedos das mãos mal conseguem acionar o
gatilho.
Não
lembro quando foi o meu último banho. Quando o fiz foi com a água apanhada no
capacete. A sujeira já não faz diferença. Nesse buraco os cheiros das fezes e
dos cadáveres em decomposição se misturam e transformam a atmosfera em algo
irrespirável. Ratos e outros animais se proliferam ao redor e disputam espaço
conosco. Em muito somos semelhantes a eles: rastejando, cavando o miserável
espaço para que não sejamos soterrados.
Próximo
de mim um soldado sussurra uma canção. Ela me fez lembrar os momentos que
antecederam a minha chegada à frente de batalha. No cinema os filmes mostravam
os feitos dos soldados em batalhas, as condecorações recebidas, o retorno
festivo para casa. Esquadrilhas de aviões perfeitamente alinhados faziam voos
rasantes e nuvens de paraquedistas saltavam de aviões de transporte e pousavam
suavemente sobre os campos. Soldados felizes empunhavam metralhadoras sobre
tanques de guerra. Outros fumavam e jogavam cartas em seus alojamentos, tendo
ao fundo os pôsteres com as pin girls,
as garotas penduradas na parede, com aquelas incríveis curvas.
Eu
sabia que a guerra seria dura. Porém, eu esperava por momentos compensadores.
Troquei a vida no campo pela promessa de um futuro melhor em troca da defesa da
Pátria. Aqui não há nada de heroico. Muitos nem sabem ao certo por que lutam.
Não queriam matar, mas se não matarem são mortos. Medalhas não podem compensar
as centenas de corpos enterrados em valas improvisadas neste solo que não é o
nosso.
Esperamos
pela morte. Talvez ela chegue hoje. Faremos uma última investida contra o
inimigo. Eles parecem melhor preparados.
Um
garoto enlouquecido sai aos berros, correndo para fora da trincheira. Será
morto! Consegui derrubá-lo, segurando-o pelos pés. Prendo-o com força. Ele se
acalma e chora como uma criança, apoiado em meu ombro. Lembra-me o meu irmão
mais novo. Sempre que algo o assustava ele corria para os meus braços.
Sentia-se protegido. Gostaria de poder abraçá-lo agora.
O
comandante recebe uma mensagem pelo rádio. Chegou a hora. Alguns aviões aliados
iniciam o bombardeio sobre o inimigo. A artilharia abre fogo também. Lá vamos
nós. Só nos resta seguir em frente. Eu mal consigo perceber o que acontece a
vinha volta. Apenas corro e atiro em direção as sombras, na direção da origem
dos tiros do inimigo. O ar está repleto de fumaça. Ouço o zumbido das balas
passando muito perto.
Corpos
voam após as explosões. O inimigo está próximo. Preciso colocar em ação a minha
baioneta. Corpos são atingidos na minha frente. Meu Deus, por favor, permita
que não tenham sido as balas da minha arma.
O
pipocar dos tiros apresenta intervalos maiores. A fumaça vai baixando
lentamente. Em volta só destruição. Corpos imóveis, gemidos de dor. Alguns se
arrastam clamando por ajuda. Olho com mais atenção. Somos maioria. Os inimigos
se rendem.
Um
dos nossos maltrata um dos prisioneiros. Tento impedi-lo e convencê-lo de que
são como nós, eles já não representam perigo. O soldado inimigo não sabe a
minha língua, mas, parece entender o meu gesto. Ajoelha-se, implora pela vida.
Faço sinal que se levante. Ele busca algo no bolso. Fico alerta, mas ele apenas
tira uma fotografia. Na imagem uma jovem esposa e duas lindas menininhas com
não mais de cinco anos. Eles são desarmados e trancafiados em uma grande sala, escombros
de uma escola. Socorremos os sobreviventes, enterramos nossos mortos. Os prisioneiros
enterram os seus.
Exaustos
preparamos algo para comer. Estava quase esquecendo como é boa a sensação de
ficar em pé. Conseguimos até rir um pouco, comemorando a vitória.
Dormi
pouco menos de duas horas, chegou o meu turno de guarda. Há ruídos nos
escombros à minha frente. Chamo a atenção do outro guarda e seguimos em direção
às ruinas de uma casa feita de pedras. Uma granada é lançada em nossa direção.
Percebo a luz da detonação e um som surdo impacta meus ouvidos. Só resta a
escuridão.
−
Comandante! Comandante! Parece que a anestesia local lhe trouxe um pouco de
sono também.
−
É, peguei no sono mesmo. Conseguiram retirar o estilhaço?
−
Sim. Agora só resta mais um. Dê uma olhada em sua radiografia. Mas ele ainda está
numa região de difícil acesso. Mais alguns anos e o seu corpo o expulsa.
−
É incrível! Passaram-se mais de sessenta anos e eu ainda guardo as minhas
relíquias de guerra, os estilhaços daquela granada. Por falar nisso, durante o
seu trabalho eu tive o mesmo sonho com as visões daquele dia fatídico. Durante
muito tempo essas lembranças me perseguiram mais fortemente. Já fazia algum
tempo que isto não acontecia.
−
O senhor teve muita sorte comandante. Este estilhaço, antes alojado perto do
coração, poderia ter sido fatal.
−
Meu companheiro de guarda não teve a mesma sorte.
−
Até a próxima comandante!
−
Até! Vou esperar o meu neto lá fora, aproveitar um pouquinho da luz do sol.
Neste
meu resto de vida tento acreditar que os homens tenham aprendido com os horrores
das guerras passadas. O noticiário insiste em me dizer o contrário. Meu neto
está atrasado. Acho que vou até a banca de jornal.
−
Parado aí, velhinho!
−
O que vocês querem?
−
Vacilou! Passa a carteira.
−
Vocês não têm mais o que fazer?
−
Olha aí a carteira do coroa, soldadinho, herói de guerra.
−
Você não sabe do que está falando.
−
Por que bateu no velho?
−
Ele levantou a bengala.
−
Tá morto.
−
Vaza, vaza! Velhote miserável, só tinha dez paus.
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