Ô
mulher atentada minha mãe! Saí de casa fumaçando, para os lados da vó Altina.
Esperei um tempo, de modo a não assustar a pobre velha, e entrei de fininho,
procurando um canto para me aboletar na cozinha. Vó pensou que era assombração:
“Menino, pelo amor de Deus, quase tu me mata do coração! Avia, visage!
Que tu quer?”. “Nada não, vó, só queria comer uma coisinha”. “E que coisinha é
essa? Tem nada não, ainda vou fazer o armoço”. O dia não estava
auspicioso para ninguém. Vó devia estar vexada com algum problema. Pedi
desculpa e vazei, mais uma vez, à procura de destino. Não tinha o que fazer –
estava de férias do colégio –, então fui à igrejinha. Comecei a rezar, pedindo
a Deus que me acudisse, porque eu não merecia a mãe que Ele mesmo
me deu – o cúmplice –; que ela era muito grossa, pior que papelderolarprego;
não podia me ver parado que arrumava coisa para eu fazer. Sem paciência com a
reza, avistei o padre Felismino entrar na sala paroquial. Ele carregava uma
ruma de papel debaixo do braço. Limpava a testa, estando, pelo que parecia,
muito cansado. Tinha certeza de que eu estava invisível, com o meu corpinho de
avoante magro. Cheguei mais perto e fiquei, ao lado do altar, espiando por uma
brecha na porta. O homem começou a mexer, impaciente, nos papéis e tirou de
dentro uma caixinha. Demorou uns dez minutos para abri-la. Estava fechada com
um cadeado pequeno, que o padre arrebentou. Vez ou outra ele olhava para os
lados, para não ser surpreendido por algum intruso. Matutei que era coisa
importante, porque, também, ele se bulia para se esconder. Baixou-se um
instante por detrás das cadeiras da mesa; logo me aperreei, porque a vista não
alcançava. Por sorte, o objeto caiu no chão. Vi que era uma joia conhecida. O
padre teria afanado? Sempre suspeitei do olhar cismado do padre, como se sempre
devesse algo. Ele arrumou o pequeno embrulho e colocou num livro furado,
depois, na prateleira mais alta – sim, havia um corte no meio do livro, com um
buraco, que encaixava certinho com o objeto. E, então, o padre estava pronto
para sair. Dei a volta no altar e fingi que vinha do outro lado. “Que é isso,
menino?! Como entrou aqui?!”. “Seu padre, é que a porta estava meio aberta…
entrei pra rezar. O senhor pode me confessar?”. “Agora não… de jeito nenhum”.
“Seu padre, é que tenho um pecado horrível e, se o senhor não me confessar, se
eu morrer na próxima esquina – ninguém sabe – eu posso ir direitinho pro
inferno”. “Pois venha, menino maligno… Cinco minutinhos… Diga logo, porque eu
tenho o que fazer”. O padre nem se alembrou que eu não tinha feito a primeira
comunhão. “É o seguinte: dona Geruza, a mulher do delegado, faleceu na semana
atrasada, como o senhor sabe. Ela tinha uns querer comigo, me deu umas roupas e
um bocado de presente. Mas eu não fui um bom menino: roubei uma joia que ela
tinha lá escondida. Levei pra casa da minha vó e deixei guardadinha. Hoje,
quando fui bulir lá, o bicho tinha desaparecido. Será que Deus me perdoa? Se
desapareceu, não tem mais pecado, né?”. Será que ele acreditava que ladrão que
rouba ladrão tem cem anos de perdão? “Olha, menino, isso é muto gra-ve –
gaguejava e engolia as letras –. Mas Deus perdoa tudo, não é verdade? – como se
me perguntasse, esperando confirmação e livramento –. Vá… Dois padre-nossos e
dez ave-marias”. No fim, o padre parecia inofensivo, mais aperreado que o
normal. Decerto, viu a minha safadeza e quis tirar proveito. Foi tomar um
cafezinho com vó e, quando ela deu as costas, bufo: pegou a joia.
Fizemos um trato com os olhos: ele daria tudo para manter o meu silêncio. Não
foi tão ruim assim. Agora é barriga forrada e tostão na mão. O delegado não ia
gostar nadinha disso.
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