Desde
que descobrira o estilo gótico, não o arquitetónico, claro, mas sim o “estilo
de vida”, Beatriz mudara completamente. De “menina doce”, de roupas discretas e
sem maquilhagem que se visse, passara a vestir-se de negro da cabeça aos pés, olhos
cheios de Kohl e sombras escuras, unhas negras e toneladas de correntes, anéis,
cruzes e outra quinquilharia a imitar prata, uma vez que esta estava muito para
além das suas posses.
E
não pensem que era fácil, na pequena vila em que morava estas coisas não eram exatamente
populares e, com a recusa formal dos pais em autorizarem compras via Internet,
era forçada a improvisar quase tudo.
Mas
lá diz o ditado, quem quer sempre alcança e Beatriz, ou antes, Bea, nome que
decidira adotar mas que, infelizmente todos os seus conhecidos e família se
recusavam a usar, Bea, repito, lá se ia governando o melhor que podia.
Do
ponto de vista da mãe, a única vantagem desta mudança radical era a filha ter
finalmente aprendido as bases da costura. É que sem dinheiro para roupa nova,
muito menos do género que queria, andara a rebuscar em malas e baús tendo tido
a sorte de encontrar algumas roupas antigas de luto que fora autorizada a
adaptar à sua vontade, desde que isso não custasse mais do que a sua parca
mesada permitia.
Quanto
à maquilhagem, bom, uma prima mais velha dera-lhe uns conjuntos de sombras
antigas, dos que tinham várias cores nada populares juntamente com uma ou duas
mais usáveis, digamos. Alguns eram até tão velhos que fora forçada a deitá-los
fora por lhe terem causado uma forte inflamação na pele. Mas quem quer ser bela
tem de sofrer por isso e Bea estava disposta a tudo para ser a única gótica da
zona, mesmo que isso implicasse passar horas a criar acessórios que as
felizardas que viviam em cidades grandes ou tinham pais mais compreensivos
podiam muito simplesmente comprar.
Mas
não se limitara ao visual. Tinha ideias muito vagas sobre o que significava ser
gótico, mas criara a convicção de que isso envolvia “artes negras”, o que quer
que fossem, uma visão muito pessimista da vida e de tudo e uma certa paixão
pela morte e por tudo o que com ela estivesse relacionado.
Mas
como os pais tinham sido formais na proibição de velas negras e outras coisitas
desse estilo, como traçar um grande pentagrama na parede do quarto, Bea ficara
reduzida a andar pelos cantos sempre com um ar macambúzio, a suspirar
constantemente e a lançar para o ar frases lapidares como “a vida são dois
dias” e “a única certeza é a morte” ou, ainda, a sua grande favorita, “nascer é
uma doença fatal”.
O
problema é que ninguém lhe ligava nenhuma e tudo o que dizia e fazia caía em
saco roto, desde que não afetasse as finanças da família ou fosse
deliberadamente mau. Davam-lhe, até, uma certa latitude no seu comportamento
desde que em certas alturas se portasse como toda a gente, como uma ida semanal
à missa de domingo vestida “como deve ser”.
Um
belo dia, tendo visto na televisão um documentário sobre o Dia dos Mortos no
México e os verdadeiros festins que se faziam nos cemitérios nessa noite, Bea
teve uma ideia brilhante: passar parte da noite de Halloween na parte antiga do
cemitério da vila!
Ao
contrário do que sabia acontecer noutros locais, em que os cemitérios estavam
rodeados de muros altos e com um grande portão fechado ao fim do dia, aquele
tinha apenas um murete e uma entrada sempre aberta, o que, diga-se de passagem,
fazia bem mais sentido para Bea.
Melhor
ainda, ficava já nos limites da povoação, por isso a sua presença ali já de
noite não seria notada. Mesmo assim, iria instalar-se na zona de campas tão antigas
que já ninguém sabia quem ali estava enterrado. É que um restinho de
superstição levava-a a querer evitar os túmulos dos seus familiares e gente sua
conhecida, não fosse o diabo tecê-las...
E
Bea passou umas semanas a preparar o seu esquema. Sabia que havia uma festa na
vila para gente da sua idade para celebrar o Dia das Bruxas, com máscaras e
tudo isso. Não fora convidada, claro, uma vez que cortara com todos os amigos e
conhecidos quando mudara de vida. Mas os pais não sabiam disso e seria, pois,
um bom pretexto para se ausentar uma boa parte da noite.
Arranjou
também umas tantas velas, bom, brancas, inevitavelmente, mas de noite todos os
gatos são pardos, Até porque eram mais para decoração do que outra coisa uma
vez que tinha uma boa lanterna e ia ser uma noite de Lua Cheia. E para o
festim, umas bolachas e chocolates fariam a sua vez.
Na
véspera, Bea mal conseguiu pregar olho, estava entusiasmadíssima e tinha a
certeza de que aquela noite a iria mudar para sempre.
Ao
fim da tarde, vestiu-se com a sua melhor roupa negra, adornou-se com todas as
suas “joias” e pintou-se o melhor que pôde. Era uma pena o cabelo ser tão
claro, mas um gorro resolveu a questão.
E ao
escurecer saiu de casa, levando na sacola que lhe servia de carteira todo o seu
equipamento. Se os pais notaram que não se mascarara nada disseram sobre isso,
pelo que lhes dizia respeito, mascarada andava sempre ela.
E lá
foi Bea, toda satisfeita, a caminho da “sua” noite especial. Chegou ao
cemitério sem qualquer percalço e não teve a menor dificuldade em encontrar uma
boa zona para se instalar. Apesar de aquela secção estar abandonada há muito
tempo, continuava a receber alguns cuidados, as ervas daninhas eram retiradas
regularmente, enfim, fazia-se o possível para que não destoasse demasiado da
parte nova e cuidada.
De
início tudo correu às mil maravilhas, era uma experiência nova e há muito
desejada. Mas Bea teve alguma dificuldade em manter as velas acesas, o murete
baixo que lhe permitira a entrada não cortava o vento, bastante forte nessa
noite. E, apesar de saber que a Lua estava cheia, de nada lhe adiantava uma vez
que o céu estava totalmente coberto de nuvens.
Felizmente
tinha a lanterna, apesar de o seu uso diminuir um pouco o ambiente romântico
que tinha imaginado. E esquecera-se de trazer uma manta ou algo em que se
pudesse sentar e a terra estava bastante fria.
Mesmo
assim, não iria desistir à primeira dificuldade. Instalou-se o melhor que pôde
sobre uma pedra tumular caída, colocou a lanterna de modo a dar-lhe alguma luz
indireta e começou a petiscar enquanto tentava concentrar a mente na curta
duração da vida humana, no “pó és e ao pó voltarás” e outras ideias igualmente
felizes.
Por
volta das 9 da noite estava pronta para dar a “noitada” por concluída, mas isso
seria dar parte de fraca. Até porque ninguém contava com o seu regresso antes
da meia-noite ou algo assim. Decidiu, pois, estirar-se sobre a dita pedra
tumular e tentar imaginar que jazia ali morta, tarefa menos fácil do que
imaginara.
Apesar
do frio e do incómodo da cama improvisada estava quase a adormecer e nem notou
que a lanterna se apagara por ter as pilhas esgotadas. Teria dormido uma boa
soneca, se não fosse ter ouvido uma voz rouca e forte a articular uns tantos
palavrões.
Sobressaltada,
sentou-se à escuta. O som continuava e, pior ainda, aproximava-se de onde
estava. E apesar de conhecer praticamente toda a gente da vila, não conseguia
identificar aquela voz.
E
veio-lhe à mente tudo o que tinha ouvido sobre esta data, coisas muito no
género de “a noite em que os fantasmas andam à solta”, fora os muitos contos de
terror que fora lendo nos últimos meses graças à biblioteca de uns seus tios
que nem faziam ideia do que tinham herdado em termos literários – felizmente,
ou ter-lhe-iam proibido o acesso...
Esquecido
o gótico, a festa mexicana e tudo o mais, Bea só teve uma ideia, fugir dali o
mais rapidamente possível e refugiar-se no abrigo do seu lar. E se os pais
estranhassem ter chegado tão cedo da festa onde supostamente fora, azar, tudo
era preferível a ver-se frente a frente sabe-se lá com quê.
E
assim fez, batendo todos os seus recordes de velocidade apesar da escuridão
daquela noite a dar para o tempestuoso.
O
Sr. Jorge, coveiro a tempo parcial, nunca veio a saber como o seu hábito de
curtir a bebedeira ocasional no cemitério, para não incomodar a mulher, mudou
uma vida. É que aquela noite mudara realmente Bea. Ou antes, fizera-a
desaparecer, dando lugar, novamente, à Beatriz de outrora, nada gótica, que
evita até usar seja o que for negro.
Luísa Lopes
Imagem criada com QuickWrite
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