Rui Mirandela não tinha preparado minimamente a reforma, quando ela chegou. Após 38 anos a tratar de confrontações numa conservatória de registo predial, a ordem de soltura atingiu-o com violência na zona da rotina. De repente, não tinha de se levantar cedo, não tinha de se despachar a almoçar, nem sequer tinha horários. Tinham-se acabado as preocupações burocráticas e as pessoas a assediá-lo com papéis. Nos primeiros dias ainda se levantava e, já que estava levantado, dava uma volta. Mas, para quê sair de casa? Só para ter com quem falar?
Nessa altura desanimou um bocadinho. E fez os seus balanços de vida. Na verdade, vivera para a profissão. Os planos de casar e ter filhos tinham ficado lá para trás. Namoradas não lhe tinham faltado, mas nunca chegara ao arrojo de assumir um compromisso. E agora… nem amigos tinha.
Iniciou então uma ronda telefónica pela sua lista de conhecidos. A maioria dos números já não existia, assim como muitos dos proprietários, e outros estavam “inoperacionais”. A meia-dúzia que respondeu ao desafio deu para muitas e alegres almoçaradas. Pôr as conversas em dia, relembrar bons tempos do trabalho, da tropa ou do liceu animaram-no durante uns meses. Depois, começaram a cansá-lo um bocadinho. E as namoradas… que seria feito delas?
Nos últimos anos, já bocejara bastante à frente do facebook. Talvez fosse altura de procurá-las por lá. O mais difícil foi lembrar-se dos nomes. Com esforço mental e ajuda de uma agenda antiga recuperou nove nomes, mas todos sem apelido. Do mal, o menos.
Pesquisando por Claudina, apareceram-lhe oito resultados e nenhum deles promissor. Então percebeu que havia a função “Ver tudo”. Aí, já tinha 163 caras que o ameaçavam com horas de pesquisa, mas, a meio da lista, numa visualização prévia, reconheceu o sorriso. Ali estava ela, a Claudina, com uns bons anos em cima, mas ainda com o mesmo sorriso. Sobrenome Veiga. E ainda “rompia meias solas”. Aparentemente morava em Arruda dos Vinhos e as fotos não mostravam maridos. Pediu-lhe amizade.
Entre a primeira mensagem e o acerto de um encontro não decorreram mais do que cinco dias. Seria em casa dela. A meio da tarde, para não se confundir com um almoço e os seus stresses prováveis.
O entusiasmado aspirante a janota cortou as unhas dos pés e das mãos e deu uma aparadela nos tufos mais espessos e grisalhos do corpo. Nunca se sabe. E pediu à barbeira um corte ligeiro. Mas sem dar tréguas aos excessos das sobrancelhas e dos pelos que espreitavam no nariz e ornamentavam as orelhas.
O primeiro contacto foi fácil e inspirador. Como se tivessem deixado de se encontrar na semana anterior. Claudina estava um pouco mais velha do que nas fotos do facebook, mas, por outro lado, Mirandela gostou da sua genuinidade assumida. Mantinha um visual e gostos hippies que ele já tinha esquecido. Agora não se chamavam assim, mas era certamente “vegana” e esotérica. O espaço de estar, muito atapetado e com ornamentos a lembrar culturas tibetanas e budistas, era aconchegante. Incensos ou fumos equivalentes perfumavam o ar. Chás de ervas que ela própria colhia na região confortavam e avivavam o corpo. Mirandela resolveu tomar um comprimido azul, à socapa. Claramente, o encontro podia encaminhar-se para essa região exigente e ele não estava seguro do seu desempenho.
Realmente, o caminho estava bem assinalado e era só “seguir a sinalização”. Mas, embora sem placas de proibição, nem rotas marcadas, intuía-se a renúncia da velocidade e a opção pelo desfrute da paisagem, dos aportes dos outros sentidos, da companhia, em suma, da viagem. Claudina era exímia a rodar nos limiares, nas margens, a saudar adiamentos. O contacto era mínimo, descontínuo, tangencial, mas não descurado. Mirandela, que nunca fora muito paciente, nem amante da frugalidade, desesperava de tensão e urgência. «Estamos quase a chegar; espera só mais um bocadinho» era a mensagem que enviava mentalmente ao seu apressado bólide. A estrada estava boa, com algumas curvas, mas de piso firme. Por ele, carregava no acelerador a fundo e ia por ali afora, embora se lembrasse que sempre ficava constrangido quando chegava antes da hora. Então, achou que era tempo de refrear a pressa e experimentar viajar pelo desfrute.
Mas achar é fácil e dizer ainda mais. Percorrer a superfície de Trás-os-Montes em ponto-morto e a travar era de loucos, mas resolveu tentar. Realmente, travando nas descidas e ganhando balanço para vencer os relevos, dava para seguir em baixa, mas segura velocidade. Só duas horas depois, a subir para o túnel do Marão, meteu a primeira mudança. Mas não se afigurava viável chegar ao destino com a primeira; meteu a segunda e, não muito depois, a terceira. Em vão. Com o motor a ferver e fartos de metáforas rodoviárias e automobilísticas, resolveram encostar às boxes.
Exausta, Claudina não deu mostras de grande estranheza, como se fosse um caso muito natural; para Mirandela, regressar de um encontro romântico com a garrafa de espumante por estoirar era uma nova e perturbadora experiência. Não que o incomodasse muito; só não estava habituado àquele volume em permanência. Mas acreditava que seria uma contratura temporária. Como uma cãibra. Com o passar das horas, pondo o caso em perspetiva, Mirandela assumiu a glória e o orgulho inusitado, passeando-se nu, em frente do espelho do roupeiro. Caramba, que pujança! Era pena se fosse desaparecer na manhã seguinte. Resolveu tirar umas fotografias, para mais tarde recordar aqueles momentos singulares, e enviou uma a Claudina, como informação.
De manhã, mal tinha retomado um mínimo de lucidez, sentiu o peso gostoso que ambicionava. Verificou. Lá estava ele, impávido e ereto, como uma sentinela em prontidão. Como é que podia ser? Talvez do Viagra, talvez dos chás, talvez dos fumos, já que não acreditava em magias, nem em bruxas, mesmo da Arruda. A hipótese de problema de saúde, eventualmente grave, aflorou-lhe a consciência depois. Havia de ver isso. Por enquanto, não sentia constrangimento nenhum, pelo contrário; o sentimento de potência e plenitude era tão bom... Encostou-se na cama, de pernas abertas, a desfrutar daquele bem-estar. E no resto da manhã, Mirandela passeou-se nu pela casa, admirando com regularidade os vários enquadramentos do fenómeno.
Com sentimentos adolescentes, resolveu almoçar num sítio público e muito frequentado. Escolheu a zona de restaurantes do centro comercial local. Nas interações com as funcionárias, só o olhar brilhante denunciaria o seu estado. A saborear um bife com molho de mostarda, divertia-se por se saber aprumado no meio de tanta gente, mas incógnito devido aos boxers apertados que vestira. Animado com a situação, meteu-se no Metro e saiu nos Restauradores. Misturou-se com a multidão, atravessou o Rossio e percorreu a Rua Augusta até ao Arco. Se baixasse as calças, de certeza que teria mais público do que qualquer daqueles homens-estátuas, pensou. Depois subiu ao Chiado, entrou na Brasileira e na igreja dos Mártires. Sempre com um sorriso subtil de que só ele conhecia a razão.
Deu por si a pensar como poderia dar boa aplicação àquele milagre. Ainda antes da primeira ideia, o telemóvel deu uma resposta: era Claudina a desafiar para mais um lanche, com chá de Arruda. E foi assim mais do que uma vez por semana, durante uns meses. Sempre com o mesmo comportamento consistente do seu bem-apessoado relações-públicas, a que só faltavam olhos azuis para um garbo de engenheiro hidráulico. Apesar de já ir suscitando rostos pensativos à amiga, que não desdenharia uma inundação da zona do cais. Começou a insistir para Mirandela ir ao médico. Podia ser uma coisa má; não se sabia.
Mirandela preferiu falar com o seu ex-colega de Liceu, que tirara Cardiologia, mas já não exercia.
— Parece apenas um priapismo não isquémico, mas representa seguramente um enorme esforço do sistema vascular — avisou ele. — Pode não ser nada, mas é melhor fazeres umas análises e um eletrocardiograma.
Quando chegaram os resultados, Mirandela estava apreensivo, sobretudo pela possibilidade de ser constrangido a fazer alguma operação que lhe retirasse aquele mimo de terceira idade.
— Não encontro nada de preocupante, Rui. Até o eletrocardiograma está impecável. Tudo indica que é uma situação pontual, uma espécie de disfunção retrátil, não explicada ainda; possivelmente, um bloqueio da comunicação neurológica. Queres que te arranje uma consulta de Neurologia?
— Não, não, obrigado! — descartou Rui, tentando retomar o controlo no ponto em que o entregara. — Deixa que eu depois marco.
— Como queiras. Vou-te receitar só um creme, por causa das assaduras. Desfruta!
Desfrutar? Sim, claro, mas, exceto o óbvio, o quê?
— Diz-me uma coisa: não achas que a Ciência podia estar interessada em mim? Sempre devia dar para fazer umas boas viagens, a exibir-me em congressos médicos um pouco por todo o mundo…
— Rui, a situação parece fixa e irrepetível, uma espécie de prótese natural e inamovível. Se descobrissem o que provocou essa rigidez constante, talvez conseguissem produzir um medicamento para a reproduzir, mas, se alguém estivesse interessado, iriam vendê-lo a cada pessoa uma vez, no máximo. Eles precisam de vender, mas aos milhões.
Mirandela despediu-se do amigo não tão feliz como devia. Não estava a conseguir notoriedade para o seu notável estado. Talvez num circo; talvez num bar de strip-tease. Depois das meninas do varão, entrava o próprio varão. Havia de fazer inveja a muitos que iam ali só deleitar-se com a sensação do arranque do motor.
Na semana seguinte, numa quinta-feira já quente, foi até à Praia do Meco. Ali podia dar largas ao seu desejo de exposição, mas sem se tornar insultuoso. Erro seu. Foi olhado como, possivelmente, um tarado sexual, que trazia para a praia, ainda que nudista, a excitação sexual. Ali era bem-vinda a naturalidade do corpo, em comunidade e em comunhão com a natureza, não a luxúria egocêntrica. Acabou por se resguardar numa dobra das dunas, só a abandonando para ir à água.
À saída da praia foi abordado por um tipo que julgou conhecer:
— Desculpe tocar no assunto, mas não pude deixar de reparar que você mantém uma ereção há horas. É uma prótese ou é por causa deste lugar inspirador?
— Não; este é o meu estado normal, desde há umas semanas. Mas não ando à procura de companhia — frisou.
— Não, não se preocupe; eu também não. Acontece que sou produtor teatral e preciso de uma novidade para uma peça ao estilo dos “Monólogos do Pénis”, que é um tema que tem esgotado bilheteiras, quer no Brasil, quer aqui. Já tenho o texto. Agora você fez surgir a novidade. Estaria disposto a ser figurante num espetáculo deste tipo? Bastaria andar em palco de um lado para o outro, enquanto os atores, à boca de cena, debitariam o texto. Como uma ilustração do tema tratado. Seria exibido só em casinos e em sessões tardias num teatro. O que me diz?
Mirandela ficou sem fala, durante uns segundos. «Caramba, era mesmo isto. E teatro…»
— Uau! A ideia agrada-me… só precisava de tempo para medir as consequências...
— Com certeza que, de vez em quando, seria reconhecido na rua. Nem sempre é agradável. Mas ainda retiraria dividendos dessa condição, acredito; não sei se seria do seu agrado.
— Ora, não… Desejarem-nos é sempre um afago de ego, ainda que não seja pelas boas razões e nem estejamos interessados.
A adaptação ao palco foi quase imediata. Apesar da exposição total aos olhares permanentes e incisivos do público, o seu desempenho era fácil. Nem precisava de ter angústias com possíveis esquecimentos de texto, como os atores. Que aliás, ressumavam algum ciúme por aquele êxito tão pouco trabalhoso.
Passaram-se semanas, meses; quatro noites por semana, Mirandela, qual Priapo dos tempos atuais, passeava-se atrás dos atores, durante uma hora e vinte, de pénis ereto a exatos 40 graus. Percebia os olhares de alguma inveja dos homens, de alguma cobiça das mulheres; seguramente, todos de espanto e maravilhamento. A sala cada vez enchia mais e a partir aí do primeiro mês estava sempre esgotada. O êxito trouxe a Mirandela muitos desafios expressos e convites tácitos, todos recusados, e até uma ida à televisão, ao programa da Júlia, a contar o seu caso. Com 68 anos, cavalgava a crista da onda pessoal. Até um dia.
Mirandela nunca soube o que desencadeou o murchamento fulgurante. Talvez uma hesitação dos atores, talvez um risinho da assistência, talvez o frio do palco. Ou nada. Em menos de 30 segundos, o seu orgulho abateu-se para uma posição humilde e desinteressada. Um “Oh” elevou-se da plateia. Os atores procuraram com o olhar a razão daquele burburinho uníssono. Viraram-se. Mirandela parara de frente para o público, o olhar em terror, ciente de não poder esconder a calamidade. A oitava maravilha, o menir vivo, transformara-se numa natureza-morta pendente de entrepernas. No dia seguinte, até a CMTV relatou o acontecido.
A rogos do produtor e do elenco, Mirandela acelerou para Arruda, à procura da repetição do milagre. Mas, desta vez, quem ficou surpreendida com a viagem foi Claudina, arrastada pela enxurrada mesmo à chegada. Nem reconheceu aquele condutor que, ébrio de paixão, certamente se despistara, derrubara algum dique e agora se mostrava sóbrio e apaziguado.
Na discussão urgente do grupo de teatro, houve quem defendesse a naturalidade de um membro pendente. Mirandela, constrangido e nervoso, ainda se passeou atrás dos atores durante duas ou três semanas, mas, pendente por pendente, o produtor acabou por contratar um jovem de 26 anos, que, pelo menos, tinha o resto da pele firme e lisa.
Joaquim Bispo
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Imagem:
O deus romano Mercúrio, deus do comércio e da abundância, fundido com o deus romano da fecundidade e da abundância, Priapo, pintado a equilibrar o peso do seu enorme pénis ereto com um saco de ouro.
Afresco da Casa dos Vettii, Pompeia, sepultada pela erupção do Vesúvio em 79 A.D.
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2 comentários:
Bem humorado e lmaginativo como sempre . Guinha parabéns
Muito obrigado, Guinha.
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