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domingo, 25 de dezembro de 2022

Vitória inútil

 


Vitória inútil (A outra – 2ª parte)


Resumo da primeira parte: http://www.revistasamizdat.com/2022/11/a-outra.html

Nely, aspirante a escritora e jovem amante de Galhardo, um mecenas artístico, certo dia, roída de ciúmes da mulher dele, manda matá-la, através dos bons ofícios de Albano, um ex-namorado.

*

Tenho tantas saudades, querido! Vem ver-me, vem! Sim? — convidou Nely, inquieta, numa dessas manhãs um pouco enevoadas, habituais na zona.

É talvez a quarta chamada de Nely para o amante, desde que a mulher dele foi morta. Deu-lhe os pêsames, sentidamente, logo que a comunicação social noticiou o caso, incitando-o a arranjar forças para ultrapassar tão dura provação. Depois, deixou passar quinze dias sem dizer nada. Quando ligou novamente, Galhardo desculpou-se, mas mandou entregar-lhe o cheque habitual.

Desta vez, Galhardo acedeu ao convite. Nely foi particularmente carinhosa e, no fim de uma sessão de amor bastante ardente, quis falar do futuro.

Querido, preocupo-me contigo. Deves estar tão sozinho! Tu não podes viver assim! Tens de ter uma mulher para te acarinhar, para te dar as boas-noites, para dormir agarradinha a ti, para te beijar quando acordas. E para fazer amor contigo quando quiseres. Sabes que eu sou afetuosa contigo, porque gosto muito de ti. Não quero pressionar-te, mas custa-me que estejas sozinho, tendo-me a mim, disposta a viver junto de ti.

Nely, eu também gosto de ti, mas ainda é muito cedo. Está tudo muito fresco.

Eu sei! Posso esperar mais um pouco, mas já estou à espera há tanto tempo. Quanto mais tenho de esperar?

Não sei Nely. O que sei agora é que estava muito habituado a ela. Não é fácil, de repente, mudar os hábitos todos. E creio que a minha filha não ia aceitar muito bem.

Mas algum dia vai ter de ser!

Não necessariamente. Posso continuar nesta situação por tempo indeterminado. Para dizer a verdade, não sei se quero voltar a casar tão cedo.

Não? Mas tu precisas de uma mulher, sei-o bem! Não sentes que te faz falta uma mulher meiga e compreensiva? Que melhor companheira podes arranjar que eu?

Sabes, eu era feliz antes de matarem a Matilde. E também posso dizer que sou feliz agora. Quando tenho saudades tuas, venho ter contigo; quando tens saudades minhas, ligas-me. O que há melhor que isto?

Não me sinto bem. É como se me estivesses a usar. Enquanto tinhas a tua mulher, eu entendia. Mas agora…

Por mim, não é preciso mudar o que seja. Tu tens a tua casa, eu tenho a minha. Continuo a vir cá de vez em quando, continuo a deixar o cheque.

Isso é outra coisa que me incomoda. Eu sei que é um mecenato para eu poder escrever, mas parece outra coisa. Como se me estivesses a pagar para dormir contigo. Sabes o que quero dizer.

Nada disso! Se fosse para te pagar favores sexuais, teria de gastar muito mais do que te deixo. O que te dou não é para te pagar nada; é para te ajudar a ser escritora.

Acho que estás é a ajudar-me a ser puta. E das baratas. Eu não quero ser puta, quero viver da Literatura, de cabeça erguida.

Mas não está fácil, não é? Poucos são os escritores que o conseguem.

Não, não está fácil. Mas, se queres ajudar-me a ser escritora, realmente, não me dês dinheiro; leva-me para o pé de ti. Faz-me tua mulher!

Também não é simples para mim. Sabes, a morte da minha mulher fez-me pensar. Antes, sentia-me como que preso. Tinha prazer não só por estar contigo, mas também por estar a ser infiel. Era uma espécie de atitude reflexa à prisão do casamento. Analisando-me a fundo, acho que vinha ter contigo também pelo prazer da transgressão. A relação contigo existia, digamos assim, em função dela. Agora, que aquela grilheta desapareceu, em vez de me sentir mais livre, tenho sentido menos urgência de te procurar. Achas que consegues entender como funciona a cabeça de um homem?

Nely começou por um esgar da face, antes de começar a soluçar convulsivamente. Arrastadamente, articulou:

Tu não gostas de mim!

Gosto! — afirmava Galhardo, sem ênfase.

Como é possível tratares-me assim, depois de tudo o que tenho aturado? Achas que gosto de fazer broches, a seco? Eu sei lá por onde andaste com ele!

Não sejas ordinária!

Porquê? As tuas gajas são todas muito finas? Só aqui a puta é que te faz as badalhoquices que te apetecem, é?

Olha, eu não gosto nada de cenas destas. Recompõe-te, se fazes favor.

Senão, o quê?

Senão vou-me embora. Não há razão para estares com essas coisas. Alguma vez te prometi que casava contigo? Alguma vez te obriguei a fazer alguma coisa que não quisesses?

Vai-te embora, vai! Abandona-me aqui sozinha! Deita-me fora como um trapo velho. Vai; mostra o canalha que és!

Vou, vou. Vou mesmo, Nely! Assim, não! Não apareço por cá tão cedo, está bem? Mas não te preocupes, que eu faço-te chegar o cheque. Adeus!

Vai p’ó raio que te parta, mais o cheque! Desaparece da minha vista! Desaparece! — gritava Nely, transtornada.

Galhardo saiu da casa de Nely, meio constrangido pela cena que ela fizera, meio aliviado por estar a libertar-se desta ligação. A relação já ia longa e de vez em quando sentia que não passava de “mais do mesmo”. Iria estar atento a que Nely não passasse dificuldades económicas, pelo menos durante um ano, mas precisava de leveza, de jovialidade e não de situações penosas e recriminações.


No dia seguinte, Nely, de cara fechada, ligava para Albano, de um telefone público, alterando a expressão assim que ele atendeu:

Olá! Vais bem? Sim, tudo bem! Queria falar contigo, sabes porquê? Por causa de uma dívida, estás a ver? Estás? Maroto, sabes como levar a tua avante! Já sei como pagar, mas não queria que entendesses como o simples pagamento de uma dívida, antes como um agradecimento sentido e desejado. Sabes, tenho pensado muito naqueles tempos. Acho que fui uma estúpida em não esperar mais uns minutos. Era muito nova. Se fosse agora, e depois de ver como estás bonito, tinha esperado pelo menos uma hora. Não te rias, que é verdade! Sim, podes vir quando quiseres; avisa-me só, que é para me pôr airosa. Vá, um beijo!

Joaquim Bispo

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Este conto integra a coletânea Tempo de Vilões — resultante de concurso literário —, disponível na Amazon, em formato eBook Kindle. https://www.amazon.com.br/gp/product/B0BB52VNKX?fbclid=IwAR1GOZxMaC6Ka3Ae6NUGvQej0wTpM_UQ6ZN7bn8bpvBykJkP0XeUIn7nJr8

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Imagem:

Henri de Toulouse-Lautrec, Mulher ruiva num sofá, 1897.

Coleção particular.

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4 comentários:

Como sempre, uma história interessante num estilo muito agradável. 2023 felizes inspirações (para o ano será mais)! Com amizade Manuel Alte da Veiga.

Obrigado, Manuel.
Bom ano e boas leituras!
Abraço!

A história está bem escrita. As necessidades fisicas e económicas eternamente de mão dada. Beijinhos.

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