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quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Despedida de mãe


 

Não te admires se esta cartinha não for muito longa nem muito coerente, é que, com a inúmera medicação que me dão, os meus períodos de consciência são sempre curtos e nem sempre muito racionais. E apesar de me dizerem que não devo desesperar, que enquanto há vida há esperança e outros chavões similares, pressinto que talvez seja melhor deixar-te algo meu, uma mensagem, digamos, para o caso de eu não sobreviver.

Ainda não te vi sem ser em fotos e começo a pensar que não chegarei a ver-te e muito menos a tocar-te. Não podes sair da incubadora que te mantém vivo e eu não posso deixar estas máquinas que tentam manter-me presa à vida na vaga esperança de que o meu corpo comece finalmente a reagir favoravelmente.

Irónico, não é, estarmos ambos dependentes de máquinas, tu no início da tua vida e eu no fim da minha?

Mas divago. O que realmente te queria dizer é que nos curtos meses que tivemos juntos, em que te senti plenamente dentro de mim, me trouxeste uma imensa felicidade. Não és o meu primeiro filho, o teu aparecimento foi até uma surpresa numa altura em que pensava que tudo isso ficara há muito para trás. Mas confesso que, passada a surpresa e o pânico iniciais, passei a ver-te como um verdadeiro milagre, apesar dos usuais profetas da desgraça insistirem em falar nos perigos de uma gravidez na minha idade e estado de saúde.

Fiz, contudo, ouvidos moucos a tudo isso e concentrei-me em apreciar ao máximo uma experiência que, por muito que seja repetida, é sempre nova, sempre diferente. É certo que nem sempre me sentia bem, os célebres enjoos matinais atacaram cedo e em força e nunca chegaram a desaparecer totalmente. E para quem sofre tanto da coluna como eu, uma gravidez não é certamente a melhor opção.

Passei estes longos meses a imaginar como iria ser a nossa vida depois de nasceres, como serias... sim, nem sabia que eras um rapaz, preferi ter a surpresa completa, a da gravidez e a do teu sexo. Estranhamente, uns dias tinha a certeza absoluta de que serias uma menina, finalmente, com quem um dia poderia ter o tipo de conversas entre mãe e filha com que sempre sonhei. Mas noutros, bom, tinha a mesma certeza de que viria aí mais um rapaz, para grande alívio do teu pai que até tinha pesadelos com a ideia de ter uma filha na idade dele.

Pensei também muito nos erros que não repetiria e no muito que aprendi com os teus irmãos. Mais velha agora, muito mais velha, e mais ciente de quem sou, seria certamente bem melhor mãe do que fui com eles, sempre pressionada por problemas económicos e falta de tempo, aliados a uma boa dose de estouvadice e ignorância próprias da minha pouca idade.

O problema é que o mundo mudou, e de que maneira, por isso o mais provável seria cometer outro tipo de erros, quem sabe se mais graves. Mas, infelizmente, estou certa de que não estarei cá para ver isso acontecer, terão de ser os teus irmãos a ajudar a educar-te, é que Raul, o teu pai, nunca foi muito bom nesse tipo de coisas, é mais um homem de “panoramas gerais”, os detalhes do dia-a-dia passam-lhe quase sempre ao lado.

Gostaria imenso de me aguentar até poder ver pelo menos uma foto decente de ti, és tão pequeno e tens tantos tubos e coisas em cima que nem te consigo ver a cara. E não me posso basear nos teus três irmãos, são todos tão diferentes uns dos outros e foram-no sempre, desde a nascença, apesar de terem saído todinhos à família do teu pai. Era, pois, bom que saísses à minha, serias uma recordação viva para quando eu já cá não estiver.

Mas não é só a parte física que me passa pela mente. Nos meus curtos períodos de lucidez dou por mim a imaginar os teus primeiros passos, a primeira palavra que dirás, o teu primeiro dia de escola, se gostarás tanto de ler como eu, a tua primeira paixoneta, enfim, tudo o que virás a sentir e a viver ao longo de uma vida que espero que seja bem longa e preenchida.

Sei que serás muito acarinhado e apoiado pelo teu pai e irmãos. E isso sem esquecer a Ana, a tua única cunhada até à data, que também está grávida, terás pois um sobrinho quase da tua idade. Gosto muito dela, é muito boa rapariga e não duvido de que virá a ser uma mãe ótima para os filhos que tiver e para ti, uma vez que já me prometeu que zelaria por ti “caso aconteça alguma coisa”.

E sei bem que cumprirá, o mais provável será até vires a ser criado na casa dela até teres idade suficiente para ires viver só com o teu pai. Sim, só com ele, porque nessa altura já os teus irmãos terão a sua própria vida, poderão até estar casados e com filhos seus, que serão mais irmãos para ti do que propriamente sobrinhos.

Espero que te falem de mim, que venhas a saber alguma coisa sobre quem te trouxe ao mundo de um modo tão desastroso. Apesar de me recusar a aceitar maus agouros, algo me levou a organizar álbuns de fotos em que eu sou o tema principal, tudo devidamente legendado para que não precises de recorrer a ninguém para saberes o que representam. E mandei converter em DVD os velhos vídeos que tínhamos de festas familiares, férias e outras ocasiões para que os possas ver à vontade – e com ordens estritas ao teu pai para que faça nova conversão caso o DVD deixe de existir...

É pena já não teres avós e nunca teres tido tios, mas com quatro irmãos e mais um sobrinho – ou sobrinha – a caminho não te faltará família para te acarinhar e te dizer quanto foste amado e desejado, apesar da surpresa tremenda que foi a tua conceção.

Mas há uma coisa que só eu te posso dizer, daí a razão de ditar esta cartinha à simpática enfermeira que cuida de mim durante a noite: é que, mesmo sem nunca te ter visto ou tocado, posso afirmar, sem a menor hesitação ou dúvida, meu querido Rui, que foste o sol do final da minha vida.

Luísa Lopes

Photo by charlesdeluvio on Unsplash


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1 comentários:

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