Estou
calejado, armado contra as falcatruas; achei que o coração havia virado pedra,
mas Irene me desmantelou. Estacionei o meu carro na rua do antigo Liceu, para
ir a um atendimento, quando me capturou o olhar de uma garotinha que estava só
no meio da praça. Continuei andando, desconcertado, fingindo que não era
comigo. E, a cada instante que me virava, de relance, ela continuava me olhando
firme. Como ela apoiava o corpo abraçando as pernas dobradas, colada ao chão,
pensei que não teria forças para se levantar e vir ao meu encontro. Eu
precisava seguir viagem; uma cliente me esperava – e o ano não estava fácil para
quem vive de seguros. Tentei passar ileso, cabisbaixo. “Ô tio, me dá um troco pra
merenda?”. Puxa, aquilo me atormentou, devia parar. Perguntei o seu nome. “Me
chamam de Sirene, mas meu nome mesmo é Irene”. Sua fala era pausada, precisava
recuperar o fôlego a cada frase. Fiquei desligado um tempo, olhando para o seu
corpo frágil, quando ela repetiu a pergunta. “Ah, sim, vou ver aqui”. Abri a
carteira e não tinha uma moedinha sequer. Reparei ao redor que havia um
comércio e uma barraquinha que vendia lanches. Compraria, sim, algumas frutas
na mercearia e uma merenda. Fomos primeiro à barraquinha. Ela pediu duas
coxinhas de frango, um pastel e uma Coca. Quis recriminá-la, como fazia com os
meus filhos, mas logo refleti que ela não teria a mesma oportunidade tão cedo,
quem sabe. De toda forma, quis agradá-la. Ela comeu as duas coxinhas e guardou
na calça o pastel. Tomou a Coca de 250mL numa golada. Perguntei por que ela
guardava o pastel. “Não, tio, é que vou dar pra uma amiga, a Lurdinha; ela
sempre quebra o meu galho”. Quando paguei, o vendedor agradeceu e emendou: “O
senhor fez uma boa ação… Essa menina está aí há quatro ou cinco dias e, pelo
que vi, não comeu nadinha”. Curioso, questionei por que ela estava na rua; se
não tinha casa; se estava só no mundo. “Eu fugi de casa, porque o marido da
minha mãe veio mexer comigo”. Fiquei possesso. A minha vontade era de ir à sua
casa e pegar o sujeito pelo pescoço. Não havia alternativa. Irene me
confidenciou que ele era dono da boca onde, inclusive, a mãe trabalhava. Ela
sabia que estava jurada de morte, e que estava no ponto mais distante da cidade
para ele não a encontrar. Eu tinha de fazer alguma coisa. Não poderia seguir a
minha vida como se nada tivesse acontecido. Caminhamos até a mercearia; desejava
abastecê-la, para não passar necessidade. Compramos o que cabia nas mãos e no
bolso da menina. Revigorada, ela disse, de supetão, que queria um lar. Meu
Deus, o meu coração partiu. Eu poderia ser o seu pai? Liguei para um amigo
advogado, que me revelou, para a minha desgraça, que, se fosse o caso, seria um
processo longo etc., etc., etc. Recomendou-me ligar para um abrigo. A menina
estava nervosa, e eu a acalmei, declarando que ali seria um estágio para a
adoção. O carro do instituto Florar demorou horrores para chegar. Fiz as vezes
de cuidador e a direcionei à assistente social de plantão. Irene entrou no
carro tremendo e chorando. Olhava para mim pedindo ajuda. Declarei, hesitante,
que ela ficaria bem. O carro foi devagar, desaparecendo pela avenida-multidão.
Chorei, ansioso e triste. Não a esquecerei. Ainda tenho coração.
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