Era
a conselheira afamada de todo aquele bosque. Começara modestamente, muitos anos
antes, escutando e aconselhando apenas as muitas corujas que ali viviam. Mas
aos poucos, à medida que a sua fama alastrava, começara a ser procurada por
outras aves, até de locais bem distantes, e pelos pequenos animais que
conseguiam trepar pelos ramos da vetusta árvore onde habitava.
O
movimento era tal que a certa altura, e por consenso geral dos habitantes do
bosque, fora convidada a mudar-se para uma abertura no tronco dessa mesma
árvore, quase ao nível do solo, que diversos animais alargaram e ampliaram de
modo a tornar-se um local confortável onde pudesse passar a receber todos os
que dela necessitavam, fossem ou não voadores ou trepadores.
Foi
ainda decretada a proibição de caçar num raio de 500 metros a partir do
“consultório”, para impedir que predadores mais “espertos” ficassem
simplesmente à espera de que fosse ou viesse da consulta. E para que se pudesse
dedicar totalmente ao bem-estar dos outros animais, foi estabelecido um sistema
de entrega de refeições – a cargo dos predadores – e de arranjo da clareira e da
sua habitação – tarefa dos que não caçadores.
A
vida prosseguiu calma e rotineira durante longos anos, sendo a nossa “Doutora”
Coruja cada vez mais procurada. Como o interior do tronco era bastante escuro,
podia receber durante algumas horas do dia animais diurnos, sem incómodo
excessivo para os seus olhos adaptados à noite.
Sem
necessidade de caçar e indolente por natureza, raras vezes se ausentava,
limitando-se a um pequeno voo ao crepúsculo, para manter a saúde e a tonicidade
das asas. Enfim, uma espécie de passeio higiénico.
Mas
um dia ocorreu a uma das raposas do bosque que mais dia menos dia iriam ter
problemas. Apesar de gozarem de vida longa, nenhuma coruja é eterna e quando a
Doutora morresse, quem passaria a aconselhá-los?
Após
muitas confabulações, foi decidido dar-lhe uma aprendiza, coruja, claro, que
fosse aprendendo com a mestra e a pudesse um dia substituir.
Apesar
do incentivo de comida certa e uma vida sem trabalhar, bom, pelo menos para
sobreviver, não houve exatamente um enxame de candidatos. A escolhida teria de
ser jovem – sim, de que serviria uma aluna idosa exceto causar a curto prazo o
mesmo tipo de problemas? – mas não em demasia a ponto de ter a estouvadice da
adolescência. E a ideia de passarem uma boa parte do dia e da noite enfiadas
numa toca não era exatamente aliciante para aves novas que tinham prazer em
voar e explorar o mundo à sua volta.
Houve
de facto apenas uma candidata, um corujinha que ferira uma asa durante o seu
primeiro voo e que mal conseguia sobreviver, alimentando-se muitas vezes de
restos de outros animais, mas sempre à socapa por saber perfeitamente que era
uma presa fácil.
A
ideia de passar a comer bem e era um motivo mais do que suficiente, isto para
além de se tornar inviolável, nem o predador mais esfaimado ousaria atacá-la. E
ter de passar a maior parte do tempo no mesmo sítio não a perturbava, voar
fazia-lhe doer as asas, pouco diferente seria.
Foi
pois aceite pela comissão encarregue da escolha, sob a condição, claro, de ser
aprovada pela Doutora.
Obtido
o seu acordo, a corujinha instalou-se num canto da toca, de onde poderia ouvir
e ver tudo, mas passando despercebida na escuridão que ali reinava. Poucos
sabiam deste arranjo e, assim, os pacientes podiam continuar a expandir-se à
vontade na convicção de que tudo ficaria apenas entre eles e a sábia coruja.
Sendo
organizada por natureza, a corujinha arranjou um grande bloco e duas canetas de
cores diferentes para ir tomando nota do que os pacientes diziam e das sábias
respostas da Doutora, tudo com muitos sublinhados e espaço para as suas notas e
opiniões pessoais. Tinha ainda um caderno onde planeava ir anotando os casos de
acordo com o tema tratado, formando assim quase um compêndio de casos e
tratamentos. Sim, a nossa corujinha tinha alma de académica!
Os
meses foram passando e a corujinha, agora bem gordinha e lustrosa graças à boa
alimentação servida a horas certas, lá ia anotando zelosamente tudo o que os
pacientes diziam, indo já no seu sexto bloco. Mas as linhas destinadas às
sábias palavras da Doutora continuavam totalmente em branco. Esta limitava-se a
fechar um dos olhos, ou ambos, virava ligeiramente a cabeça, num ou outro caso
extremo emitia um som impossível de reproduzir e que tanto podia ser
assentimento, negação ou pergunta, mas, à parte os cumprimentos e despedidas da
praxe, não abria a boca, por muito longa que fosse a consulta.
Depois
de muito matutar, a nossa corujinha encheu-se finalmente de coragem e atreveu-se
a questioná-la num belo dia em que estavam sozinhas:
-
Mestre, não entendo a razão da sua fama. Nestes meses que passámos juntas nunca
lhe ouvi uma palavra, uma frase, muito menos um conselho. Mas todos juram que
foi graças a si que resolveram certos problemas ou que encontraram o caminho
certo.
Após
um curto silêncio, a sagaz coruja dignou-se esclarecê-la, mas não antes de a
fazer jurar segredo eterno.
-
Sabes, descobri há muito que os que me consultam não estão minimamente
interessados na minha opinião. No fundo, já sabem muito bem o que têm de fazer.
Mas pensar dá trabalho e é algo que a maior parte evita. E tomar decisões,
sobretudo difíceis, exige um tipo de coragem que pouca gente tem. Virem aqui,
exporem-me os seus problemas ou dúvidas, nada mais é do que dizerem em voz alta
o que não ousam dizer a si mesmos, nem sequer mentalmente. Limito-me, pois, a fazer
sinais ou a emitir sons ininteligíveis que interpretam como apoio ou não,
consoante o que já pensavam antes de virem.
E
continuou:
0 comentários:
Postar um comentário