Estou
a dizer-vos que confesso! Sim, entrei à socapa em casa da D. Joana, já vos
disse isso dúzias de vezes! Porque não prestam atenção?
Está
bem, não se exaltem, volto a contar-vos tudo. Mas parem de falar em roubos ou ataques,
não sou nada dessas coisas e isso só prova que não me têm escutado. Eu, atacar
a D. Joana! Francamente!
Começando
pelo princípio – e diga ao seu colega ali atrás que pare de revirar os olhos ou
quem se exalta sou eu – a culpa é toda do psicólogo que consultei por
insistência da empresa. Como se andar um pouco stressado matasse alguém! Mas são
os tempos em que vivemos, uma reação mais viva, umas frases menos apropriadas,
digamos, e pronto, psicólogo com ele! Ainda tentei resistir, mas mudaram-me
para a digitalização de décadas de ficheiros e ao fim de uns dias de uma tarefa
chatérrima acabei por ceder.
E
lá fui eu três horas por semana sentar-me no consultório de um tipo qualquer
que nem sequer fingia estar interessado no que eu dizia. Não que eu lhe contasse
a verdade, pelo menos não a verdade toda, que tinha ele a ver com os meus problemas
maritais, por exemplo? Ou com a minha infância?
Não,
limitava-me a mencionar uma vaga insatisfação com a vida, uma certa desilusão por
os meus sonhos de criança não se terem concretizado, enfim, toda uma série de lugares
comuns que ouvia constantemente aos meus colegas de trabalho, os tais que se
tinham sentido tão ofendidos pelas minhas reações à sua estupidez e choradinhos
constantes.
Francamente,
nem me tinha apercebido de que lhes prestara tanta atenção, era sempre a mesma
coisa, a mesma atitude de vítima, o mesmo baixar de braços perante tudo o que
fosse um pouco mais forte do que eles ou que lhes pudesse causar danos, enfim, um
nunca acabar de queixas e queixinhas. Não admira eu ter-me passado algumas
vezes!
Bom,
pelo menos tinham servido para alguma coisa, preenchiam lindamente aquelas
horas inúteis mas pagas a preço de ouro por mim, claro, apesar de me terem
obrigado a ir às consultas recusaram-se liminarmente a pagar, mesmo em parte, o
especialista que costumavam usar quando surgia algum “trauma” entre os inúmeros
funcionários. E aposto que eram frequentes! Fica-me até a dúvida se não
receberiam uma percentagem do muito que lhe davam a ganhar...
Mas
divago.
E
qual foi a brilhante solução do génio que iria resolver os meus problemas de
ira, como lhes chamaram? Relaxar, arranjar um passatempo que me agradasse e que
me ocupasse umas horas por semana. Só havia uma condição, ser algo totalmente
diferente das minhas atividades usuais.
Não
foi mesmo nada fácil, garanto-vos, recuso-me a fazer seja o que for que exija
esforço físico e as atividades puramente intelectuais estavam excluídas à
partida uma vez que para além do meu trabalho de analista de dados passo o meu
tempo livre a ler aquilo a que a Rosa, a minha bem-amada esposa, chama
calhamaços maçudos.
Estava
prestes a mandar o psicólogo à fava quando tive finalmente uma ideia: aprender
piano! Aprecio música e em miúdo sempre tive inveja da minha irmã, teve direito
a aulas de piano e eu não, apesar de detestar música e não ter o menor jeito ou
ouvido para ela. Mas de acordo com os meus pais isso era “coisa de meninas” e,
como me repetiram vezes sem conta, eu já andava demasiado ocupado com os estudos,
jogos online e tudo isso.
Entendem
agora como tudo começou? Era totalmente diferente de qualquer outra das minhas
atividades, presentes e passadas e, para ter resultados capazes, exigiria
certamente várias horas por semana, entre aulas e prática. Sim, prática, nunca
fui de fazer as coisas pela metade e ainda antes de começar já tinha comprado
um piano em segunda mão que consegui meter no meu escritório em casa que, por
imposição da Rosa, tinha sido insonorizado uns anos antes para eu poder jogar e
ouvir música à vontade “sem incomodar os vizinhos”, leia-se, sem a incomodar a
ela.
A
D. Joana foi-me recomendada como estando muito habituada a ensinar adultos que
nunca tinham tocado num piano e fui à primeira aula cheio de entusiasmo e
vontade de trabalhar. Mal sabia eu a batucada que me esperava!
Está
bem, não precisam de se irritar assim, salto a descrição das unhas e tudo isso,
apesar de ser a base do que se passou esta noite. E se querem mesmo que eu
repita tudo, como disseram há pouco, então têm de me deixar repetir mesmo tudo
o que deu origem ao imbróglio desta noite.
Posso
continuar? Muito obrigado, são muito “compreensivos”. Já agora, podem
substituir o vosso colega ali atrás, sim, o do revirar dos olhos? Para além de mostrar
falta de educação, corta-me um pouco o fim à meada ver as suas caretas e ar de
troça. No mínimo, mudem-no de lugar para eu não o conseguir ver no espelho.
Sim, assim está melhor.
Pois
bem, a D. Joana. Gostei daquela primeira aula e das que se seguiram, ela é
realmente uma boa professora e vê-se que está habituada a lidar com adultos e
não com criancinhas que têm aulas só por imposição dos pais. Sim, se um adulto
decide aprender piano, é lógico ser por vontade própria e isso altera muito
toda a relação entre professor e aluno.
Como
disse, gostei imenso das aulas, com um pequeno senão. Bom, pequeno inicialmente.
É que a D. Joana tinha umas unhas longas, mesmo muito longas. E bicudas, por
falta de melhor termo. Quase como as de um vampiro em filmes antigos, a preto e
branco. Muito francamente, pareciam mais próprias de uma modelo ou “senhora de
lazer” do que de quem toca e ensina piano. E sempre pintadas de um verniz muito
vermelho e brilhante.
O
problema é que para me ensinar a D. Joana começava por demonstrar o que queria
que eu fizesse. Ao fim de pouco tempo consegui abstrair-me do faiscar de todo
aquele vermelho quando ela atacava as teclas, mas o ruído... Ah, o ruído surdo
daquelas unhas aguçadas a baterem no marfim – ou plástico, hoje em dia quem
sabe?
Há
um detalhe sobre mim que sinto que devo realçar. Sou muito sensível a certos
tipos de ruídos. A minha mulher indigna-se sempre quando o digo, aponta inevitavelmente
o alto nível sonoro com que jogo no computador, vejo filmes e ouço música – daí
a insonorização do meu escritório. Mas não são os sons todos, são só alguns.
Tive, por exemplo, de experimentar vários teclados para o meu computador de
trabalho e para o de casa até encontrar um que não me enervasse e foi um pesadelo
encontrar um portátil com o “som” certo das teclas. E olhem que ao contrário da
D. Joana tenho sempre as unhas muito curtas, o mais rentes possível, evitando
assim que aumentem o ruído inevitável de um teclado.
Sim,
bem sei que todos acham absurda esta minha esquisitice, mas as pessoas são como
são e esta é talvez a minha única obsessão.
Perante
o que acabei de dizer, imaginem a minha reação ao batuque, sim, é o termo
adequado, daquelas unhas nas teclas de um piano. Tentei tudo para o ignorar,
cheguei até a usar tampões para os ouvidos, dos que só atenuam um pouco o
ruído, mas nada resultava. Até mesmo quando se passava uma aula sem que a D.
Joana tocasse fosse o que fosse, a tensão continuava presente, nem podia gozar
o silêncio, bom, o das unhas, claro está, porque estava sempre num sobressalto
à espera de uma intervenção dela.
É
claro que podia ter deixado o piano ou, no mínimo, arranjado outra pessoa para
me ensinar. Mas estava a progredir bastante e se acham que é fácil encontrar
quem ensine adultos, estão redondamente enganados.
Depois
de muito matutar, encontrei finalmente uma outra opção que resolveria o meu
problema sem incomodar ninguém. Muito simplesmente, decidi fazer uma pequena
alteração no piano dela. Depois, a D. Joana até podia ter unhas de aço!
Sei
que vasculharam o meu saco, encontraram certamente uma caixa com uns pequenos
retângulos transparentes muito bem embalados. Pois bem, foram cortados por mim
à medida das teclas num material que a empresa onde trabalho anda a desenvolver
para a NASA. Absorve totalmente o ruído, bom, por enquanto ainda está nos 72 %,
é leve e fácil de aplicar, a ideia é forrar uma zona de uma nave de longo
curso, para Marte, por exemplo, ou da estação espacial para dar alguma
privacidade aos astronautas, um de cada vez, claro.
Mesmo
muito longe de estar pronto, servia perfeitamente para o fim em vista,
permitir-me ter aulas de piano. Sei que me perguntaram várias vezes porque não
falei francamente com a D. Joana sobre o assunto e porque não lhe propus
abertamente a minha solução. Sinceramente, não a quis ofender. Umas unhas
daquelas dão imenso trabalho a manter sempre tão perfeitas, pelo menos a
avaliar pelas da Rosa que, apesar de manicuras semanais nunca estão assim. Eram
pois motivo de orgulho para ela, não me atrevi a fazer-lhes a menor crítica ou
algo que pudesse ser visto como tal.
Não,
a minha ideia era bem mais discreta e evitaria certamente ofender aquela
excelente senhora e ótima professora de piano.
E
foi por isso que entrei à socapa em casa da D. Joana esta noite, usando uma
janela que tive o cuidado de deixar destrancada durante a minha aula desta
tarde. Seria tudo muito rápido, como disse, o material é fácil e rápido de
aplicar. Pelos meus cálculos, uns vinte minutos, meia hora no máximo, para
entrar, fazer o trabalho e sair.
Como
é que eu podia adivinhar que havia um cão em casa? Nunca o tinha visto nem
ouvido! Mas ele ouviu-me certamente e deitou mesmo a casa abaixo ainda antes de
eu ter dado dois passos na sala do piano. Ainda se ao menos me tivessem
apanhado uma vez concluída a alteração, isso evitaria incómodos a outros
alunos, estou certo que não devo ser o único a quem o som daquelas garras
incomodam.
É
claro que depois de toda a confusão desta noite, isso já não será possível. É
que o material é experimental e secreto e tirei-o sem autorização...
Luísa Lopes
Imagem de mahbubhasan
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