—
Sempre foi assim?
—
Não, creio que não. Quer dizer, espero que não.
Estamos apenas passando por um processo de embrutecimento.
—
Seja mais claro.
—
A única maneira de sermos claros é lançar mão
de uma referência comum. E as referências que temos não são confiáveis.
—
Como assim?
—
Assim mesmo, como você disse.
—
Não compreendo.
—
Olha, para eu dizer-te ou para dizer-me alguma
coisa, teríamos que buscar uma referência que fosse um ponto de partida e a
possível base sobre a qual se daria o entendimento.
—
Talvez o passado. Temos ali alguns pontos
comuns, o que acha?
—
Sim, o passado. Talvez. Acontece que nosso
passado não é confiável, a partir do momento em que nós não o estamos vivendo.
O que temos são fotos, filmes, narrativas, lembranças, enfim, depoimentos que de
uma forma ou de outra trazem a perspectiva de quem os produziu.
—
Mas este depoimento, como você diz, nem sempre
é pessoal e diz respeito, muitas vezes, a toda uma geração.
—
Sim, é verdade. Mas uma geração destilada sob a
ótica de quem pretendeu reproduzi-la.
—
Ora, o que temos então?
—
Não temos nada. Absolutamente nada. A nossa
falta de opção é a única opção que realmente temos. Vivemos numa espécie de
saturação do vazio. Talvez até o conceito de vazio devesse ser erigido como um
símbolo. O símbolo de nossa época, época de um enorme vazio sem símbolo algum.
—
Mas o que, afinal, há em todo esse seu discurso
de mesa de bar, onde estamos sob as luzes de um recinto fechado e temos toda a
privacidade possível a uma cidade como essa, onde as pessoas fazem amor de uma
maneira bastante comedida que é pra não incomodar os vizinhos que estão vendo
televisão numa cela/sala ao lado?
—
Justamente. Justamente. Somos uma geração (se é
que se pode usar o termo para designar uma coisa tão obscura), mas somos, vá
lá, uma geração que embora vivendo numa situação coletiva, perdeu a perspectiva
do coletivo. Todas as tentativas nesse sentido fracassaram. Estamos sempre
tentando nos reunirmos de diferentes maneiras através dos tempos. Inicialmente
eram os clãs, depois vieram as classes; dentro dessas os grupos, as
associações, os casais, os amigos e um sem-número de variações dessa
necessidade primitiva e permanente. E sabe qual a origem dela? A origem está no
fato de que não somos capazes de assumir ou aceitar nosso destino isolado, embora
façamos uso dele às vezes. Mas ouça o que lhe digo: o aspecto pessoal é que
determina tudo, como sempre. Ninguém dentre nós hesitaria em matar seu pai (ou
espoliá-lo à morte) se isso fizesse parte de nosso projeto pessoal de vida. Se
esse pai se configurasse como um empecilho ou atraso às nossas projeções de
vida.
—
Então você acha que estamos sempre massacrando
ou transfigurando os valores de uma determinada época para construirmos a
nossa, que julgamos mais avançada e coerente que a fase anterior e que nossa
tendência, de um modo geral, é estabilizarmo-nos como indivíduos mais ou menos
autônomos ou pelo menos buscar isso?
—
A tendência que vejo é a supremacia de uma
individualidade arraigada sobre egoísmos e interesses fundamentados numa lógica
de desagregação do coletivo, como a que já estamos começando a viver.
—
Mas não somos animais sociais e, sobretudo,
políticos?
—
Somos animais políticos adestrados ao social
enquanto isso nos convier. Somos, na verdade, animais pessoais.
—
E para o futuro?
—
Ora, o futuro quem prepara e delineia são
justamente aqueles que particularizam o presente no sentido de estabelecer um
padrão básico que dá primazia a uma determinada perspectiva que se quer impor
de cima para baixo. Da cúpula para o indivíduo. E essa cúpula é também, no fim
das contas, um só e poderoso indivíduo. O futuro é um investimento a longo
prazo feito por pessoas que tentam sublimar a morte. É como se você acreditasse
na vigência de uma hierarquia pós-tumulo fundamentada na astúcia. Essas pessoas
que apostam no futuro são geralmente astutas, mesquinhas e amigáveis.
—
E você, em que está apostando?
—
Aposto que ainda somos capazes de tomar mais
algumas cervejas.
0 comentários:
Postar um comentário