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sexta-feira, 3 de junho de 2022

DIÁLOGO


 

          Sempre foi assim?

          Não, creio que não. Quer dizer, espero que não. Estamos apenas passando por um processo de embrutecimento.

          Seja mais claro.

          A única maneira de sermos claros é lançar mão de uma referência comum. E as referências que temos não são confiáveis.

          Como assim?

          Assim mesmo, como você disse.

          Não compreendo.

          Olha, para eu dizer-te ou para dizer-me alguma coisa, teríamos que buscar uma referência que fosse um ponto de partida e a possível base sobre a qual se daria o entendimento.

          Talvez o passado. Temos ali alguns pontos comuns, o que acha?

          Sim, o passado. Talvez. Acontece que nosso passado não é confiável, a partir do momento em que nós não o estamos vivendo. O que temos são fotos, filmes, narrativas, lembranças, enfim, depoimentos que de uma forma ou de outra trazem a perspectiva de quem os produziu.

          Mas este depoimento, como você diz, nem sempre é pessoal e diz respeito, muitas vezes, a toda uma geração.

          Sim, é verdade. Mas uma geração destilada sob a ótica de quem pretendeu reproduzi-la.

          Ora, o que temos então?

          Não temos nada. Absolutamente nada. A nossa falta de opção é a única opção que realmente temos. Vivemos numa espécie de saturação do vazio. Talvez até o conceito de vazio devesse ser erigido como um símbolo. O símbolo de nossa época, época de um enorme vazio sem símbolo algum.

          Mas o que, afinal, há em todo esse seu discurso de mesa de bar, onde estamos sob as luzes de um recinto fechado e temos toda a privacidade possível a uma cidade como essa, onde as pessoas fazem amor de uma maneira bastante comedida que é pra não incomodar os vizinhos que estão vendo televisão numa cela/sala ao lado?

          Justamente. Justamente. Somos uma geração (se é que se pode usar o termo para designar uma coisa tão obscura), mas somos, vá lá, uma geração que embora vivendo numa situação coletiva, perdeu a perspectiva do coletivo. Todas as tentativas nesse sentido fracassaram. Estamos sempre tentando nos reunirmos de diferentes maneiras através dos tempos. Inicialmente eram os clãs, depois vieram as classes; dentro dessas os grupos, as associações, os casais, os amigos e um sem-número de variações dessa necessidade primitiva e permanente. E sabe qual a origem dela? A origem está no fato de que não somos capazes de assumir ou aceitar nosso destino isolado, embora façamos uso dele às vezes. Mas ouça o que lhe digo: o aspecto pessoal é que determina tudo, como sempre. Ninguém dentre nós hesitaria em matar seu pai (ou espoliá-lo à morte) se isso fizesse parte de nosso projeto pessoal de vida. Se esse pai se configurasse como um empecilho ou atraso às nossas projeções de vida.

          Então você acha que estamos sempre massacrando ou transfigurando os valores de uma determinada época para construirmos a nossa, que julgamos mais avançada e coerente que a fase anterior e que nossa tendência, de um modo geral, é estabilizarmo-nos como indivíduos mais ou menos autônomos ou pelo menos buscar isso?

          A tendência que vejo é a supremacia de uma individualidade arraigada sobre egoísmos e interesses fundamentados numa lógica de desagregação do coletivo, como a que já estamos começando a viver.

          Mas não somos animais sociais e, sobretudo, políticos?

          Somos animais políticos adestrados ao social enquanto isso nos convier. Somos, na verdade, animais pessoais.

          E para o futuro?

          Ora, o futuro quem prepara e delineia são justamente aqueles que particularizam o presente no sentido de estabelecer um padrão básico que dá primazia a uma determinada perspectiva que se quer impor de cima para baixo. Da cúpula para o indivíduo. E essa cúpula é também, no fim das contas, um só e poderoso indivíduo. O futuro é um investimento a longo prazo feito por pessoas que tentam sublimar a morte. É como se você acreditasse na vigência de uma hierarquia pós-tumulo fundamentada na astúcia. Essas pessoas que apostam no futuro são geralmente astutas, mesquinhas e amigáveis.

          E você, em que está apostando?

          Aposto que ainda somos capazes de tomar mais algumas cervejas.

 


 

 

 

 

 

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