Falam
de desejos e dores, enquanto eu tenho menos de cinco minutos para resolver a
minha vida. De que lado vou ficar, da morte ou da ressurreição? Não possuo a
graça da dúvida ou da premonição. As situações estão postas e devo engoli-las
sem mastigar. Está tudo muito confuso, não é? Nem o tempo para formar estas
palavras me socorre. A minha verdadeira vontade é de abandonar tudo, mas não
posso. Sou mãe de dois filhos pequenos ainda; sem pai e sem paz. Eles demandam
todo o meu sangue – que já é insignificante para mim. Preciso supri-los da
minha seiva, que é amarga e gasta. Eles lamentam pelos cantos; sofrem contidos,
nem forças para espernear têm. São dois pobres coitados que vieram ao mundo
pela insanidade dos pais. Vamos ao começo, então: conheci Augusto no ano de 2017,
na Praia de Iracema. Ali, Augusto era aclamado como o “Mago da cannabis”. Ele
fornecia suprimento para quase toda a região. Fiquei fascinada com o seu jeito
livre, absoluto, articulado, e, como senti depois, carinhoso. Não havia discordâncias;
falávamos como deuses. Eu morava na Barra do Ceará, do outro lado da cidade, e,
para mim, era uma compulsão estar com o Mago. É tanto que endoidou a minha
cabeça em questão de dias, chamando-me para morar com ele num vão mixuruca, na
divisa da Rua Historiador Raimundo Girão com a Avenida da Abolição. Havia um
ingrediente importante: ele era italiano, galante, sedutor. Tinha a elegância
de dosar a voz, com o veludo correto para cada estação. O que ele me pedia que
eu não fosse capaz de fazer, para mim era um tremendo sofrimento. Apenas com
duas semanas juntos, ele se mandou e passou três dias fora. Foi o primeiro
baque. O Mago evaporou. Fiquei maluca, perguntando a um e a outro. Uma senhora
muito viva, nativa da praia, disse que o dito cujo tinha mania de sumir quando
as coisas apertavam. Entendi, depois, que o aperto tinha a ver com aflição de
abstinência da cocaína e com cheiro de polícia. Mago apareceu de repente,
sinuoso, como se não houvesse nada, me tratando com o maior amor do mundo. Safo
e inteligente, me fez esquecer o absurdo em um minuto. Eu já era outra mulher,
dobrada pelos instintos. O sexo era transcendental; dançávamos segundo o uivo
dos ventos. Gemíamos, como gatos, facilmente uma noite inteira, varando o dia.
Aprendi a me pertencer com o Mago. Numa altura, grávida do primeiro filho, me
sentindo dona de mim, decidi que mandaria no meu corpo e, por isso, fumaria um
beck atrás do outro; não me importava o que acontecesse. E pensava que aquilo
seria bom para neutralizar as aflições – minhas e do bebê, que devia estar
estressado com o aperto do meu corpo mínimo envolvido no seu –; Mago também me
convencia disso. Fui ao hospital com queda de pressão e dores na região
abdominal. A médica perguntou se eu fazia uso de drogas e não menti. Ela disse
que, se eu continuasse assim, ou perderia meu filho, ou ele nasceria com
sequelas. “Mesmo a maconha?”. “Sim, mesmo a maconha é proibida. Não é porque
veneno de cobra é natural que não vai fazer mal”. Não confiei muito no alerta
da médica alvoroçada; fumava quando me convinha, pouco. Mago contou que a
“barra tava pesada”. Disse que deveríamos morar numa praia, por um tempo, até
as coisas esfriarem. Fomos a um recanto isolado, praia de Moitas, lugar ainda
intocado, na base da perfeição. Quando Cícero nasceu, o pai ficou besta e
domado, parecia outro. Vivíamos para o menino. Até que um dia, sem mais nem
menos, Augusto escapuliu de novo. Voltou com uma semana. Já não havia comida
para mim e, por consequência, para o pequeno. Falou que precisava tratar de
negócios com o Fuego, um tipo argentino que encontrei de passagem em Fortaleza.
Fuego era empresário do ramo da trambicagem. Fazia negócio com tudo; até com a
mãe, se duvidar. De fato, Mago voltou com uns trocados que nos abasteceram por
meses. Descobri que estava grávida. O chão se abriu e fui tragada. Não era
possível dar conta de um, quanto mais dois. Felizmente, Mago arranjou um
emprego em um restaurante. Com a lábia solta, encantava os clientes e, por
isso, foi ficando. Francisco nasceu antes do tempo. O hospital mais próximo era
de Icaraizinho, e dava para ver que não tinha estrutura e equipe. A sorte foi
que Francisco estava na posição e veio num parto natural – depois de seis a
sete horas de trabalho. A terceira fuga do Mago se deu quando o menor tinha
dois meses. Antes de ir, Mago deixou a casa repleta de comida, e dessa vez
avisou que voltaria em dois ou três dias. Demorou uma semana, duas, e nada. Saí
com os dois pelas redondezas. Perguntei sobre o paradeiro no restaurante em que
ele trabalhou. “Se a senhora não sabe, imagine a gente!”, respondeu o gerente
aborrecido, dizendo que o avisasse, quando o encontrasse, que o “bonito” estava
demitido. Eu sentia uma gastura e um aperto no coração. Fui a Fortaleza na
boleia do caminhão de um conhecido de um conhecido. Tive ainda de pagar
sessenta reais de gasolina – fiquei com trinta para as necessidades. Abandonei
tudo em Moitas; não esperava voltar tão cedo. Quando entrei na cidade grande, o
medo me paralisou. As crianças choravam porque sabiam do meu sofrimento.
Dormimos nas ruas por seis dias, até topar com um maluco que era amigo do Mago
e que trabalhava no mesmo ramo. Ele não teve pena: “Mago morreu, senhora… Não
vi o corpo, mas dizem que ele devia muito e o acerto com os bichões foi com a
vida dele. Tá todo mundo com medo aqui. É melhor a senhora se mandar”. Não me
mandei. Estou mendigando uma oportunidade e só recebo porta na cara – quando
não me vêm com: “Vai trabalhar, vagabunda!”. A maior dor é ver a fome de meus
filhos. Sobre o Mago, não quero mais saber. Não sei se a história que ouvi é
verdadeira, ou se ele sumiu, ou se voltou para a sua terra. De um jeito ou de
outro, pagará no inferno. A minha sentença é essa aqui.
0 comentários:
Postar um comentário