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terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Coisas do Coração



Foi mesmo um amor assolapado, à primeira vista, como os dos romances ditos cor-de-rosa de antigamente. Pelo menos da parte dela. Mas vamos aos factos que estes, sim, são o que realmente importa neste mundo moderno em que vivemos e que não se deixa levar por fantasias e contos de fadas.

Foi meramente por acaso que Bela viu Francisco pela primeira vez. Menina recatada, educada “à moda antiga” pela sua ultraconservadora família, as suas diversões eram raras e escolhidas a dedo de modo a não ferirem as suscetibilidades de uma menina jovem e inocente. E ia sempre acompanhada por uma familiar, idosa, claro está, porque as moças da sua idade, mesmo as de boas famílias, não eram de fiar.

Mas naquela tarde a tia com quem fora às compras sentiu-se mal ainda mal tinham começado e quis voltar logo para casa. Como precisava urgentemente de um vestido novo para uma pequena soirée em casa de uns amigos dos pais que se realizava já nessa noite, Bela foi autorizada a ficar sozinha na boutique cara e exclusiva do Centro Comercial da moda, com estritas instruções de se despachar o mais depressa possível e apanhar imediatamente o carro que a viria buscar depois de levar a tia a casa.

Como já sabia o que queria, a compra foi rápida e Bela decidiu aproveitar aqueles raríssimos momentos de liberdade para tomar um sumo na zona de restauração pública, coisa que, se o soubessem, faria eriçar totalmente o cabelo de todas as tias, avós e quejandos e, sobretudo, da mãe.

Mas não quis saber, pagou a sua bebida, uma mistura de frutos tropicais que nunca tinha provado, claro, sumo lá em casa só de laranja e acabado de espremer por uma das criadas, e sentou-se numa mesinha vaga, sentindo-se a digna descendente dos intrépidos navegadores quinhentistas de que, aparentemente, a sua família tinha alguns e dos bons.

Curiosa com aquele ambiente desconhecido e até exótico para si, olhou à sua volta e reparou quase de imediato numa mesa um tanto distante da sua onde estavam sentados quatro jovens. Conhecia vagamente as duas raparigas, sabia que andavam no colégio privado que frequentava, mas eram meras conhecidas. As respetivas famílias, apesar de serem  consideradas por todos como pertencendo à elite do país,  não tinham passado pelo critério de aprovação dos Vasconcelos — era dinheiro novo, novíssimo até, e, por isso, automaticamente de origem duvidosa...

Um dos rapazes era-lhe vagamente familiar, não se conseguia lembrar onde o vira, talvez numa das muitas reuniões ou visitas de cerimónia a que mãe e tias a arrastavam.

Mas o outro... Oh, o outro! Alto, garboso, com um ar aprumado e vestido a rigor com um casaco desportivo e camisa de colarinho aberto, calças a contrastar e que mesmo à distância se via que eram de boa qualidade pelo modo como caíam, um ar meio trocista na face que parecia saída de um livro de arte, dos que via às escondidas porque continham imagens “inconvenientes”, enfim, uma autêntica beldade, se é que se pode aplicar este termo a um homem. E quando lançou a cabeça para trás numa pequena gargalhada, Bela sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo todo, como se tivesse um febrão.

O toque do telemóvel a avisá-la de que o carro chegara foi um triste despertar do enleio em que caíra. Se pudesse, ficaria ali horas a fio a olhá-lo, talvez arriscasse até ir dizer olá às duas moças, arriscando-se a ser ignorada ou ainda pior. É que, na realidade, nunca se tinham falado, estavam em turmas diferentes e não tinham amigas em comum.

Mas qualquer atraso seu implicaria um interrogatório cerrado, sim, a KGB, se ainda existisse, bem podia aprender umas coisas com a mãe e as tias, isto para não falar da avó de quem as filhas não passavam de pálidas cópias. Por isso levantou-se muito a contragosto para regressar a Sintra e ao belo palacete em que a família residia há gerações, mas atualizando-o, claro, dentro do possível para garantirem o máximo conforto.

Nos dias seguintes só pensava nele, agindo quase como uma zombie, termo que ouvira no colégio e que, apesar de nunca ter visto um — sim, a televisão e filmes que via também eram escolhidos a dedo — lhe parecia adequar-se ao estado em que estava. Receou até ter adoecido, sempre que o recordava sentia calores a percorrerem-lhe o corpo, arrepios, enfim, um nunca acabar de sensações desconhecidas. E os sonhos que tinha! Bom, não se lembrava exatamente deles quando acordava, só sabia que O envolviam e que lhe deixavam o corpo num estado de lassidão total.

Foi pois uma surpresa agradabilíssima vê-lo numa gala de angariação de fundos para um museu apoiado pelos pais. Foi-lhe até apresentada oficialmente, Francisco Magalhães, sim, era esse o seu nome, o filho de uma conceituada família do círculo dos pais que acabara de se formar em Gestão e se preparava para entrar para os quadros da antiquíssima empresa da família.

Bela pouca ou nenhuma experiência tinha da vida, esta limitava-se à leitura de alguns romances inócuos que a governanta lá de casa lia e que ela surripiava quando podia, mas mesmo assim percebeu claramente que Francisco era um namoradeiro nato e que os galanteios que lhe dirigiu durante essa noite nada tinham de pessoal. Mas não se deixou desencorajar, decidiu imediatamente casar com ele, tarefa facilitada pela cumplicidade mal escondida das famílias que viam na sua crescente aproximação uma bela solução empresarial com proveito para ambas as partes.

Apesar de não gostar mais dela do que de muitas outras com quem saía, Francisco viu rapidamente as vantagens de uma ligação oficial com Bela: era bonita, tinha “compostura”, vestia-se com gosto e até algum requinte, saberia comportar-se nos jantares, festas e convívios que a sua situação futura na empresa o obrigaria a frequentar e, ainda por cima, um casamento entre eles levaria também à união das empresas das famílias, criando-se assim algo enorme nessa área que sozinho levaria anos a alcançar.

Casaram, pois, após um período de noivado de duração considerada conveniente e em que nunca foram deixados sozinhos, “não fosse o diabo tecê-las”, como disse uma tia muito pouco apreciada por usar expressões um tanto, digamos, “populares”.

Foi um casamento muito badalado, cheio de convidados de qualidade, a verdadeira nata da sociedade, todos a fingirem ignorar os inúmeros fotógrafos e jornalistas presentes, mas fazendo-se discretamente à foto. Amigos, bom, não os havia propriamente, Bela convidou, como convinha, as primas para damas de honor e Francisco contribuiu com uns colegas de curso que, por mera coincidência, claro, lhe poderiam vir a ser muito úteis no futuro. E a lua-de-mel foi num luxuoso hotel de Paris, nada dessas modernices das Caraíbas ou Bali, cheias sabe-se lá de quem.

Mudaram-se para um luxuoso apartamento na melhor zona de Lisboa, oferta dos pais dele e requintadamente mobilado pelos dela, e iniciaram a sua vida de casados e a profissional dele com facilidade e à vontade.

E os primeiros dois anos correram lindamente. Tinham ambos os dias totalmente preenchidos, ele nos seus afazeres profissionais e encontros de negócios, ela em compras, almoços e chás com as esposas de pessoas com interesse para a empresa do marido e, ocasionalmente com a família, que agora quase só via em algumas festas e reuniões.

O tempo a sós era pouco, mas Bela continuava a sentir o mesmo que sentira naquele já longínquo dia no Centro Comercial. Era raro trocarem mais do que meia dúzia de palavras e estas raramente eram pessoais, mas ela nunca tivera o hábito de se abrir com amigas, até porque nunca tivera nenhuma a sério. Mas se lhe perguntassem, diria que continuava apaixonadíssima pelo marido e que este era tudo com que sempre sonhara.

De vez em quando alguma “boa alma” insinuava-lhe que Francisco não era exatamente um marido exemplar, ou seja, fiel, mantendo os seus hábitos de namoriscar com todas as que lhe apareciam pela frente. Ou indo até mais longe nesses seus devaneios, muitas vezes até com as esposas de clientes. Mas Bela fingia não entender o que assunto, tarefa fácil uma vez que conseguira manter a sua imagem de menininha inocente. Não que fosse assim tão ignorante, pensava saber bem o que eram os homens com base nos livros que lera em solteira e que, curiosamente, agora que os podia ter à vontade tinham deixado de lhe interessar. Mas a única coisa que lhe interessava é que Francisco era seu e bem seu, todas as outras, caso existissem, não passavam de mero ruído de fundo.

Até que um dia... Oh, dia fatídico!

Francisco ausentara-se durante seis meses em viagem de negócios por vários países de África e da América do Sul e fora decidido que seria demasiado incómodo para Bela acompanhá-lo, uma vez que iria fazer prospeção de novos negócios em áreas isoladas e com pouco ou nenhum conforto. Ficara pois em Lisboa, mantendo a sua usual vida social, sendo agora acompanhada por um primo já idoso nas ocasiões em que não ficaria bem ir sozinha.

Mas contava os dias até ao regresso do marido e voltou a ter quase diariamente os tais sonhos que tivera ainda antes de o conhecer e que sabia agora que tinham um forte conteúdo sexual. Situação um pouco estranha porque, apesar de serem ativos nessa área, supunha que com uma frequência normal, Bela não era particularmente sensual, sentia até mais emoção quando observava o seu Francisco do que quando faziam “coisas de casados”, frase herdada de uma das suas muitas tias.

Faltava-lhe, pois, acima de tudo, a “dose” diária de o ver e sentir os tais calafrios que nunca a tinham abandonado. Os meses foram passando lentamente até que, como sempre acontece quando se fala de tempo, o período da ausência se aproximou inevitavelmente do fim. Mas a data foi adiada por duas vezes, deixando-a cada vez mais com os nervos à flor da pele.

Quando o dia chegou, finalmente, Bela teria ido de boa vontade esperá-lo ao aeroporto, para encurtar a demora em vê-lo, mas isso não era um comportamento digno de uma Magalhães e muito menos de uma Vasconcelos, ficar ali especada no meio de uma multidão como uma mulherzinha qualquer à espera do marido.

Ficou, pois, em casa, a andar de um lado para o outro, a consultar o relógio a cada dois minutos, nervosíssima. Nem sequer tinha o recurso de se pôr junto à janela a ver se avistava o carro, a entrada para a garagem subterrânea ficava nas traseiras do prédio e por muita ânsia que sentisse nunca lhe ocorreria rebaixar-se a ir para a cozinha onde estava a empregada interna.

Ao fim do que lhe pareceu uma eternidade a porta abriu-se e Francisco entrou, de sorriso rasgado. Mas em vez de correr para ele, como imaginara durante a longa ausência, Bela ficou especada no sofá em que acabara por se sentar, quase abrindo a boca de espanto. Aquele era o seu marido, o seu belo maridinho?

Os meses que passara em viagem por países pouco desenvolvidos, digamos, não tinham sido nada bons para Francisco. Com poucas opções alimentares e noites sem nada para fazer exceto beber, engordara bastante e tinha agora uma bem respeitável “barriga de cerveja”. O cabelo, sempre lustroso e bem cortado, estava agora demasiado comprido e com muito mau aspeto, parecendo até sujo e oleoso. O sol não lhe dera o bonito bronzeado que costumava obter de verão na praia chique onde a família tinha uma casa e de inverno no esqui em algum sítio na moda. Em vez disso, queimara-o demasiado e permitia ver agora pequenas rugas de expressão em torno dos olhos e nos cantos da boca. Enfim, em vez de algo digno de um dos tais livros de arte da sua juventude, mais parecia um Zé qualquer nada atraente e pouco cuidado.

Em vez do entusiasmo que antecipara durante a longa espera, Bela sentiu apenas frieza e distanciamento. E foi muito a custo que nessa noite retomou a vida de casada, fê-lo apenas porque lhe tinham inculcado mal chegara à idade casadoura que era essa a obrigação de uma boa esposa.

Nos meses seguintes, Francisco fez dieta, foi mais ao ginásio, enfim, cuidou de si. E em breve voltou a ser o homem elegante e garboso de outrora. Mas Bela não conseguia tirar da mente aquele desconhecido gordo e desleixado que a surpreendera naquele dia do seu regresso. E em breve descobriu, sem surpresa, que o amor, não, a paixão desenfreada que sempre sentira pelo marido desaparecera sem deixar rasto.

Ainda mantiveram a fachada de um casamento feliz, ou pelo menos harmonioso, durante uns anos, fazendo agora vidas totalmente separadas mesmo em casa, apenas porque um divórcio seria péssimo para a empresa e a vida financeira de ambos. Isto para não falar do escândalo que causaria nas suas famílias, onde o lema era desde há muito, amantes sim, divorciados não. Num piscar de olhos à modernidade, estariam até dispostos a aceitar a existência de “casos” por parte de ambos os membros do casal.

Mas após a morte dos membros mais velhos dos clãs Vasconcelos e Magalhães, nomeadamente a tão temida avó de Bela, este acabou por chegar, com grande espanto da sociedade e das revistas “sociais” onde tinham lugar quase cativo e que nunca tinham dado por nenhuma desavença entre eles. Apontavam-nos até frequentemente como o casal perfeito, o modelo a seguir num mundo cheio de tentações e de separações.

Enfim, coisas do coração...

Luísa Lopes

Photo by Odan Jaeger from FreeImages


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