Foi
mesmo um amor assolapado, à primeira vista, como os dos romances ditos
cor-de-rosa de antigamente. Pelo menos da parte dela. Mas vamos aos factos que
estes, sim, são o que realmente importa neste mundo moderno em que vivemos e
que não se deixa levar por fantasias e contos de fadas.
Foi
meramente por acaso que Bela viu Francisco pela primeira vez. Menina recatada,
educada “à moda antiga” pela sua ultraconservadora família, as suas diversões
eram raras e escolhidas a dedo de modo a não ferirem as suscetibilidades de uma
menina jovem e inocente. E ia sempre acompanhada por uma familiar, idosa, claro
está, porque as moças da sua idade, mesmo as de boas famílias, não eram de
fiar.
Mas
naquela tarde a tia com quem fora às compras sentiu-se mal ainda mal tinham
começado e quis voltar logo para casa. Como precisava urgentemente de um
vestido novo para uma pequena soirée em casa de uns amigos dos pais que
se realizava já nessa noite, Bela foi autorizada a ficar sozinha na boutique
cara e exclusiva do Centro Comercial da moda, com estritas instruções de se
despachar o mais depressa possível e apanhar imediatamente o carro que a viria
buscar depois de levar a tia a casa.
Como
já sabia o que queria, a compra foi rápida e Bela decidiu aproveitar aqueles
raríssimos momentos de liberdade para tomar um sumo na zona de restauração
pública, coisa que, se o soubessem, faria eriçar totalmente o cabelo de todas
as tias, avós e quejandos e, sobretudo, da mãe.
Mas
não quis saber, pagou a sua bebida, uma mistura de frutos tropicais que nunca
tinha provado, claro, sumo lá em casa só de laranja e acabado de espremer por
uma das criadas, e sentou-se numa mesinha vaga, sentindo-se a digna descendente
dos intrépidos navegadores quinhentistas de que, aparentemente, a sua família
tinha alguns e dos bons.
Curiosa
com aquele ambiente desconhecido e até exótico para si, olhou à sua volta e
reparou quase de imediato numa mesa um tanto distante da sua onde estavam
sentados quatro jovens. Conhecia vagamente as duas raparigas, sabia que andavam
no colégio privado que frequentava, mas eram meras conhecidas. As respetivas
famílias, apesar de serem consideradas
por todos como pertencendo à elite do país, não tinham passado pelo critério de aprovação
dos Vasconcelos — era dinheiro novo, novíssimo até, e, por isso, automaticamente
de origem duvidosa...
Um
dos rapazes era-lhe vagamente familiar, não se conseguia lembrar onde o vira,
talvez numa das muitas reuniões ou visitas de cerimónia a que mãe e tias a
arrastavam.
Mas
o outro... Oh, o outro! Alto, garboso, com um ar aprumado e vestido a rigor com
um casaco desportivo e camisa de colarinho aberto, calças a contrastar e que
mesmo à distância se via que eram de boa qualidade pelo modo como caíam, um ar
meio trocista na face que parecia saída de um livro de arte, dos que via às
escondidas porque continham imagens “inconvenientes”, enfim, uma autêntica
beldade, se é que se pode aplicar este termo a um homem. E quando lançou a
cabeça para trás numa pequena gargalhada, Bela sentiu um calafrio percorrer-lhe
o corpo todo, como se tivesse um febrão.
O
toque do telemóvel a avisá-la de que o carro chegara foi um triste despertar do
enleio em que caíra. Se pudesse, ficaria ali horas a fio a olhá-lo, talvez
arriscasse até ir dizer olá às duas moças, arriscando-se a ser ignorada ou
ainda pior. É que, na realidade, nunca se tinham falado, estavam em turmas
diferentes e não tinham amigas em comum.
Mas
qualquer atraso seu implicaria um interrogatório cerrado, sim, a KGB, se ainda
existisse, bem podia aprender umas coisas com a mãe e as tias, isto para não
falar da avó de quem as filhas não passavam de pálidas cópias. Por isso
levantou-se muito a contragosto para regressar a Sintra e ao belo palacete em
que a família residia há gerações, mas atualizando-o, claro, dentro do possível
para garantirem o máximo conforto.
Nos
dias seguintes só pensava nele, agindo quase como uma zombie, termo que ouvira
no colégio e que, apesar de nunca ter visto um — sim, a televisão e filmes que
via também eram escolhidos a dedo — lhe parecia adequar-se ao estado em que
estava. Receou até ter adoecido, sempre que o recordava sentia calores a
percorrerem-lhe o corpo, arrepios, enfim, um nunca acabar de sensações
desconhecidas. E os sonhos que tinha! Bom, não se lembrava exatamente deles
quando acordava, só sabia que O envolviam e que lhe deixavam o corpo num estado
de lassidão total.
Foi
pois uma surpresa agradabilíssima vê-lo numa gala de angariação de fundos para
um museu apoiado pelos pais. Foi-lhe até apresentada oficialmente, Francisco
Magalhães, sim, era esse o seu nome, o filho de uma conceituada família do
círculo dos pais que acabara de se formar em Gestão e se preparava para entrar
para os quadros da antiquíssima empresa da família.
Bela
pouca ou nenhuma experiência tinha da vida, esta limitava-se à leitura de
alguns romances inócuos que a governanta lá de casa lia e que ela surripiava
quando podia, mas mesmo assim percebeu claramente que Francisco era um
namoradeiro nato e que os galanteios que lhe dirigiu durante essa noite nada
tinham de pessoal. Mas não se deixou desencorajar, decidiu imediatamente casar
com ele, tarefa facilitada pela cumplicidade mal escondida das famílias que
viam na sua crescente aproximação uma bela solução empresarial com proveito
para ambas as partes.
Apesar
de não gostar mais dela do que de muitas outras com quem saía, Francisco viu
rapidamente as vantagens de uma ligação oficial com Bela: era bonita, tinha
“compostura”, vestia-se com gosto e até algum requinte, saberia comportar-se nos
jantares, festas e convívios que a sua situação futura na empresa o obrigaria a
frequentar e, ainda por cima, um casamento entre eles levaria também à união
das empresas das famílias, criando-se assim algo enorme nessa área que sozinho
levaria anos a alcançar.
Casaram,
pois, após um período de noivado de duração considerada conveniente e em que
nunca foram deixados sozinhos, “não fosse o diabo tecê-las”, como disse uma tia
muito pouco apreciada por usar expressões um tanto, digamos, “populares”.
Foi
um casamento muito badalado, cheio de convidados de qualidade, a verdadeira nata
da sociedade, todos a fingirem ignorar os inúmeros fotógrafos e jornalistas
presentes, mas fazendo-se discretamente à foto. Amigos, bom, não os havia
propriamente, Bela convidou, como convinha, as primas para damas de honor e
Francisco contribuiu com uns colegas de curso que, por mera coincidência,
claro, lhe poderiam vir a ser muito úteis no futuro. E a lua-de-mel foi num
luxuoso hotel de Paris, nada dessas modernices das Caraíbas ou Bali, cheias
sabe-se lá de quem.
Mudaram-se
para um luxuoso apartamento na melhor zona de Lisboa, oferta dos pais dele e requintadamente
mobilado pelos dela, e iniciaram a sua vida de casados e a profissional dele
com facilidade e à vontade.
E
os primeiros dois anos correram lindamente. Tinham ambos os dias totalmente
preenchidos, ele nos seus afazeres profissionais e encontros de negócios, ela
em compras, almoços e chás com as esposas de pessoas com interesse para a
empresa do marido e, ocasionalmente com a família, que agora quase só via em
algumas festas e reuniões.
O
tempo a sós era pouco, mas Bela continuava a sentir o mesmo que sentira naquele
já longínquo dia no Centro Comercial. Era raro trocarem mais do que meia dúzia
de palavras e estas raramente eram pessoais, mas ela nunca tivera o hábito de
se abrir com amigas, até porque nunca tivera nenhuma a sério. Mas se lhe
perguntassem, diria que continuava apaixonadíssima pelo marido e que este era
tudo com que sempre sonhara.
De
vez em quando alguma “boa alma” insinuava-lhe que Francisco não era exatamente
um marido exemplar, ou seja, fiel, mantendo os seus hábitos de namoriscar com todas
as que lhe apareciam pela frente. Ou indo até mais longe nesses seus devaneios,
muitas vezes até com as esposas de clientes. Mas Bela fingia não entender o que
assunto, tarefa fácil uma vez que conseguira manter a sua imagem de menininha
inocente. Não que fosse assim tão ignorante, pensava saber bem o que eram os
homens com base nos livros que lera em solteira e que, curiosamente, agora que
os podia ter à vontade tinham deixado de lhe interessar. Mas a única coisa que
lhe interessava é que Francisco era seu e bem seu, todas as outras, caso
existissem, não passavam de mero ruído de fundo.
Até
que um dia... Oh, dia fatídico!
Francisco
ausentara-se durante seis meses em viagem de negócios por vários países de
África e da América do Sul e fora decidido que seria demasiado incómodo para
Bela acompanhá-lo, uma vez que iria fazer prospeção de novos negócios em áreas
isoladas e com pouco ou nenhum conforto. Ficara pois em Lisboa, mantendo a sua usual
vida social, sendo agora acompanhada por um primo já idoso nas ocasiões em que
não ficaria bem ir sozinha.
Mas
contava os dias até ao regresso do marido e voltou a ter quase diariamente os
tais sonhos que tivera ainda antes de o conhecer e que sabia agora que tinham
um forte conteúdo sexual. Situação um pouco estranha porque, apesar de serem
ativos nessa área, supunha que com uma frequência normal, Bela não era
particularmente sensual, sentia até mais emoção quando observava o seu Francisco
do que quando faziam “coisas de casados”, frase herdada de uma das suas muitas
tias.
Faltava-lhe,
pois, acima de tudo, a “dose” diária de o ver e sentir os tais calafrios que
nunca a tinham abandonado. Os meses foram passando lentamente até que, como
sempre acontece quando se fala de tempo, o período da ausência se aproximou inevitavelmente
do fim. Mas a data foi adiada por duas vezes, deixando-a cada vez mais com os
nervos à flor da pele.
Quando
o dia chegou, finalmente, Bela teria ido de boa vontade esperá-lo ao aeroporto,
para encurtar a demora em vê-lo, mas isso não era um comportamento digno de uma
Magalhães e muito menos de uma Vasconcelos, ficar ali especada no meio de uma
multidão como uma mulherzinha qualquer à espera do marido.
Ficou,
pois, em casa, a andar de um lado para o outro, a consultar o relógio a cada
dois minutos, nervosíssima. Nem sequer tinha o recurso de se pôr junto à janela
a ver se avistava o carro, a entrada para a garagem subterrânea ficava nas
traseiras do prédio e por muita ânsia que sentisse nunca lhe ocorreria
rebaixar-se a ir para a cozinha onde estava a empregada interna.
Ao
fim do que lhe pareceu uma eternidade a porta abriu-se e Francisco entrou, de
sorriso rasgado. Mas em vez de correr para ele, como imaginara durante a longa
ausência, Bela ficou especada no sofá em que acabara por se sentar, quase
abrindo a boca de espanto. Aquele era o seu marido, o seu belo maridinho?
Os
meses que passara em viagem por países pouco desenvolvidos, digamos, não tinham
sido nada bons para Francisco. Com poucas opções alimentares e noites sem nada
para fazer exceto beber, engordara bastante e tinha agora uma bem respeitável
“barriga de cerveja”. O cabelo, sempre lustroso e bem cortado, estava agora
demasiado comprido e com muito mau aspeto, parecendo até sujo e oleoso. O sol
não lhe dera o bonito bronzeado que costumava obter de verão na praia chique
onde a família tinha uma casa e de inverno no esqui em algum sítio na moda. Em
vez disso, queimara-o demasiado e permitia ver agora pequenas rugas de
expressão em torno dos olhos e nos cantos da boca. Enfim, em vez de algo digno
de um dos tais livros de arte da sua juventude, mais parecia um Zé qualquer nada
atraente e pouco cuidado.
Em
vez do entusiasmo que antecipara durante a longa espera, Bela sentiu apenas
frieza e distanciamento. E foi muito a custo que nessa noite retomou a vida de
casada, fê-lo apenas porque lhe tinham inculcado mal chegara à idade casadoura
que era essa a obrigação de uma boa esposa.
Nos
meses seguintes, Francisco fez dieta, foi mais ao ginásio, enfim, cuidou de si.
E em breve voltou a ser o homem elegante e garboso de outrora. Mas Bela não
conseguia tirar da mente aquele desconhecido gordo e desleixado que a surpreendera
naquele dia do seu regresso. E em breve descobriu, sem surpresa, que o amor,
não, a paixão desenfreada que sempre sentira pelo marido desaparecera sem
deixar rasto.
Ainda
mantiveram a fachada de um casamento feliz, ou pelo menos harmonioso, durante
uns anos, fazendo agora vidas totalmente separadas mesmo em casa, apenas porque
um divórcio seria péssimo para a empresa e a vida financeira de ambos. Isto
para não falar do escândalo que causaria nas suas famílias, onde o lema era
desde há muito, amantes sim, divorciados não. Num piscar de olhos à
modernidade, estariam até dispostos a aceitar a existência de “casos” por parte
de ambos os membros do casal.
Mas
após a morte dos membros mais velhos dos clãs Vasconcelos e Magalhães,
nomeadamente a tão temida avó de Bela, este acabou por chegar, com grande
espanto da sociedade e das revistas “sociais” onde tinham lugar quase cativo e
que nunca tinham dado por nenhuma desavença entre eles. Apontavam-nos até frequentemente
como o casal perfeito, o modelo a seguir num mundo cheio de tentações e de
separações.
Enfim,
coisas do coração...
Luísa Lopes
Photo by Odan Jaeger
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