Acomodava-se sempre na
última carteira, no canto da janela. Apartado, quieto, de olhar disperso. Não
participava da aula, mas também não atrapalhava. Alheado. Estudava ali havia
muitos anos, morava no bairro. Aluno de desempenho sofrível, sempre apresentando
imensa dificuldade de aprendizagem. Mas era de paz. Sem qualquer esforço,
ganhara a afeição de todos.
Valentim não faltava,
não cabulava aula. Era quase sempre o primeiro a chegar ao portão da escola.
Madrugador. De aspecto bem cuidado, uniforme impecavelmente limpo. Com trajes
nem sempre novos, mas asseados. Nas reuniões de pais, a figura que se
apresentava era a avó materna. Infalivelmente. Também muito calada, retraída,
mas atenta. Sentava-se nas cadeiras da frente, acompanhava com devotada atenção
tudo que era falado. Apesar do desgaste dos anos, trazia semblante sereno,
olhos mansos.
Um dia, o portão foi
aberto e Valentim não estava lá. Estranho.
E, naquele dia, a carteira do fundo, no canto da janela, permaneceu vazia.
Francisco, professor de Português, percebeu. A ausência se estendeu pela semana.
Apareceu, dias depois. Abatido, ainda mais silencioso, totalmente absorto. Encabulado,
desgostoso. Perguntado sobre as faltas, tentou falar, gaguejou, desdisse. Não
queria tocar no assunto.
Francisco não se
contentou. Percebia que havia alguma anormalidade, Valentim aparentava
embaraço, deixara de ser apenas retraído. Estava aflito. Difícil era a
aproximação. Fechava-se feito ostra. De repente, o menino passou a dormir
durante as aulas. Debruçava-se sobre a carteira e ali ficava. Imóvel. Muitas
vezes, encostava a cabeça no rebordo da janela, cerrava os olhos, ressonava.
Ninguém bulia com ele. Era respeitado pela distância que sempre impusera. Parecia viver só, sem amigos.
Na reunião de pais,
Francisco aproximou-se da avó de Valentim. Ressabiado, meio sem jeito, cheio de
dedos, perguntou se havia algum problema, se o neto enfrentava alguma moléstia,
explicou que o achava debilitado. O olhar da avó não tinha a mesma mansidão, os
olhos ficaram marejados, mostravam cansaço. Por um minuto, Francisco acreditou
que ela fosse contar alguma coisa, mas, ligeira, disfarçou, refutou qualquer
prosa.
A partir dali, com a
atitude da avó, a suspeita do professor se consolidou: Valentim precisava de
ajuda. Falaria com ele. No dia seguinte, o menino não apareceu.
Francisco procurou o
prontuário de Valentim, anotou o endereço e foi até lá. Casa simples, um minúsculo jardim,
organizado. A avó, assustada, encarou o professor. Eram olhos de súplica. Ela o
levou para dentro. Calada. Não demorou muito, desatou a chorar. Disse que não
sabia onde o neto se encontrava, que, havia algum tempo, ele não falava mais
com ela, que se tornou estúpido, sem regras, sem horários. Não se alimentava
direito, dormia fora de casa, e estava sempre alterado. Nervoso. O professor
perguntou sobre os pais de Valentim. O rosto da avó ficou ainda mais sofrido.
Muito encabulada, disse que a filha estava presa. Pela terceira vez. E o pior,
que nem mesmo a filha sabia quem era o pai do menino. Um silêncio comprido se
instalou. Francisco ficou chateado por não ter sabido disso antes. Deveria ter
buscado informação entre os funcionários da escola. Se soubesse da história do
menino, não precisaria ter provocado tanto constrangimento para a pobre
senhorinha.
A avó percebeu que
Francisco ficara chocado e, refeita, procurou desfazer o peso da situação.
Timidamente, pediu ajuda. Sentia-se desorientada com a brusca mudança do neto.
Queria entender, queria resgatar o convívio de antes. O professor,
desassossegado, prometeu que tentaria ajudar, iria procurar desvendar o
mistério. Se bem que, pela experiência de tantos anos na lida com adolescentes,
sentia uma fagulha a lhe queimar o peito. A fagulha da certeza, da verdade que ele
não queria enxergar. Dia melancólico.
Quando Valentim
retornou, Francisco o chamou para uma conversa. Sentaram-se num banco, na parte
distante e arborizada do pátio. O menino estava contrariado, apreensivo.
Difícil o início da conversa. Ele se mantinha retesado, fizera uma blindagem
para qualquer argumento. Foi um monólogo, um perguntar sem fim... Sem resposta.
Ele só repetia: não preciso de nada. Nenhuma alteração foi percebida no
semblante do menino. Saiu dali da mesma maneira que chegou. Apreensivo,
blindado.
Francisco falara com
muito amor. Fez as perguntas, argumentou. Queria que Valentim sentisse a
preocupação que ele, professor, guardava no peito. Que soubesse que havia quem
se preocupava com ele. Que ele entendesse a sincera disposição de ajudar, o
verdadeiro carinho, afeição. Na verdade, queria que Valentim soubesse que não
estava sozinho. Mas, terminada a conversa, sentiu que o menino não absorvera
nada do seu mais profundo desejo.
Por um tempo, Valentim
ficou afastado. Raras foram as vezes que retornou à escola. Depois, sumiu de
vez. O professor continuava buscando notícias, mas nem mesmo a avó sabia do
paradeiro.
Numa manhã, Francisco
preparava-se para o início da aula e viu, no portão da escola, a figura
definhada da avó do menino. Discretamente, ela acenava, desorientada. O
professor foi ao encontro dela. Com seu modo reticente, muito abalada, explicou
que a polícia estivera em sua casa. Que um corpo havia sido encontrado, que
poderia ser Valentim. O corpo precisaria ser reconhecido. Trêmula, suplicou que
ele fosse até lá, ela não tinha coragem para tanto.
Infelizmente, era ele.
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