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sábado, 25 de setembro de 2021

Os pombos


É meio da manhã, numa cidade satélite da capital. Alguns transeuntes conseguem harmonizar o passeio do cão com as compras básicas do dia na mercearia da rua: pão, um saco de fruta, talvez uns iogurtes. Os retardatários passeiam canídeos em aflição urinária .

Boss, um labrador creme, e Gugu, um podengo malhado, encetam a análise do estado do mundo, depois de terem analisado o cheiro do rabo um do outro.

Estava à rasquinha — queixou-se Gugu. — A minha dona fica a ver séries pela noite adentro e eu é que me tramo. Estava a ver que fazia na carpete.

É uma chatice — concordou Boss. — O meu dono fica na Internet. Gosto muito dele, mas acho que não me dá o devido valor. Se não fosse eu, ficava fechado em casa e nem tinha coragem de meter conversa com a tua dona.

Sim, nós somos mais que úteis; somos indispensáveis às pessoas. Valemos cada tigela de ração que comemos. Sai-nos do corpo, em distribuição de carinhos, em dedicação, em melhoria da auto-estima deles.

Dando voltas largas e consecutivas sobre a praceta próxima, um bando de pombos faz o primeiro treino diário, depois de ter acomodado o papo com migalhas que tinham ficado espalhadas do dia anterior.

No rés-do-chão do 14, abria-se entretanto uma janela e uma mulher na casa dos sessenta atirava uma carcaça rija em pedacinhos para a calçada de pequenos “paralelos” de calcário. Os primeiros pombos não demoraram mais de cinco segundos a pousar e a iniciar a debicagem enérgica do pão. Toda a pequena nuvem de pombos, num momento, estava a debicar e a competir pelo pedaço maior. Provavelmente, o grupo tinha vigias de atalaia, atentas a possíveis distribuições de comida, nas janelas habituais. Para alguns, a prioridade ia para a corte às fêmeas, arrulhando o habitual “rutututu-rutututu” ou o mais refinado galanteio “ouh-ouh-ouh”, que soava a grande e agradável assombro.

Aqueles é que a levam boa, já viu? — observou Boss. — Vêm sabe-se lá donde, vivem todos ao molho, passam o dia por aí sentados à sombra a acasalar ou a voar, e não precisam de ganhar a comida. Há sempre algum totó que lha dá.

E daqui a bocadinho estão a sujar tudo. Olhe, já começaram. Agora é no chão; mais logo é carros, é candeeiros, é parapeitos de janela, é tudo. Só sabem fazer porcaria. Já viu as doenças que isto pode causar? Deviam era ir cagar lá prá terra deles!

Agora inspiraram-me. É só um bocadinho, que já venho.

Dito isto, Boss, alongando a trela, afastou-se para o meio do relvado contíguo ao passeio, deu duas ou três voltas sobre si próprio, já de patas traseiras abertas e traseiro esticado e, depois de evidentes esforços, largou meia dúzia de rolos pastosos e fumegantes. Logo a seguir, aliviado, começou a raspar com firmeza as patas na relva e preparava-se para voltar à conversa com o amigo, mas este já se aproximava e fazia uma análise fecal sumária.

O que é que você anda a comer, meu amigo? Isto cheira lindamente. Não me diga que lhe andam a dar bifes!

Não, nada disso! — riu-se o outro. — É ração do hipermercado; mas da cara. Sabe a croquetes de vaca, com uns toques de guisado de frango. O meu dono não se poupa a despesas comigo.

O dono de Boss, para não ficar mal visto perante a vizinha, desenrolou um saco plástico que trazia no bolso, enfiou-lhe a mão direita e, com cuidado, para não esmagar aqueles rolos mornos, foi-os catando um a um, tendo o cuidado de não deixar cair os que já iam enchendo a mão. Com a outra mão, virou o saco do avesso e deu um nó. Daí a pouco, iria largá-lo no caixote do lixo aplicado no poste elétrico.

Ah, desta vez, apanhou o cocó — continuou Boss. — Às vezes, finge que não tem saco ou que eu não fiz nada. Mas, aqui para nós, mesmo com uma ou outra falha, sempre somos mais limpos do que os pombos, não acha? Deviam arranjar maneira de lhes diminuir o número. Eu não digo matá-los, que eu não sou racista. Aliás, já desisti de correr atrás deles — escapam-se sempre.

Podiam dar-lhes anticoncecionais, já que não é fácil apanhá-los para os caparem, como fazem connosco — concordou Gugu. — É que não é só as cagadelas. Esta corja está cheia de piolhos. Há dois meses, a minha dona teve de me pôr uma coleira contra os parasitas. Eu sei lá se não eram piolhos? É que a minha tigela está na varanda e, de vez em quando, lá está a corja de volta dela. Roubam-me a ração e deixam os piolhos.

Naquele momento, já quase todos os pombos tinham partido, talvez a beber água junto a um torniquete de rega do jardim. Posta a conversa em dia, os donos dos cães despediram-se e também abandonaram o passeio.

No dia seguinte, o dono de Boss levou-o à rua mais cedo. A conversa com a vizinha no dia anterior tinha-lhe dado algum entusiasmo. Logo após o xixi, Boss passou a vasculhar os recantos do relvado. Junto à parede, percebeu um cheiro convidativo e avistou algo que parecia comida. Preparava-se para o provar, quando sentiu uma picada no flanco direito. Virou-se zangado e quase apanhava o patife de um pombo, que, pelos vistos, se tornara demasiado atrevido e queria competir com ele por comida. Voltou para apreciar o petisco, mas, desta vez, a dor foi violenta: uma bicada no escroto fê-lo ganir. Pousado na relva, a pouca distância, o pombo cinzento, irisado de verde no papo, olhava-o, em pose de desafio. Correu para ele, mas o pombo saltou e voou para pousar logo a seguir a um arbusto. Boss, determinado a apanhá-lo, foi atrás dele, mas, quando chegou atrás do arbusto, estacou. O pombo cinzento, muito direito, estava pousado junto à cabeça de outro acastanhado, estirado e visivelmente morto. Do bico, escorria um muco azulado e, logo ali, um pedacinho de algo muito parecido com o petisco que Boss havia pouco se preparava para comer.

Por um momento, encarou o pombo cinzento, a raiva a cair a pique, um sentimento de gratidão a crescer. Sem saber como agradecer, baixou o olhar e afastou-se.

Daí a bocado, quando a dona de Gugu o trouxe à rua e ele encaminhava a conversa para as queixas habituais contra os malandros e desocupados que só sabiam acasalar, voar, debicar e defecar, a conversa de Boss era outra.

Não diga isso dos pombos, meu caro! A mim, não me incomodam. Temos de ser tolerantes com o modo de vida a que, em certa medida, estão coagidos. Não sabemos se um dia vamos precisar uns dos outros. Por alguma razão os homens os põem nos altares. E, olhe, tenha atenção: andaram a pôr comida envenenada por aí. Não coma nada que encontre, mesmo que tenha um ar apetitoso.


Joaquim Bispo

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Imagem: Autor desconhecido, Casas pintadas, painel a fresco, séc. XVI.

Fundação Eugénio de Almeida, Évora.

Foto de jaime.silva

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