No
primeiro instante, foi como um desgarrar ermo, distante, estéril. Minha mãe foi
a única que desceu o batente e, correndo, tentou, com um choro aturdido e doído,
me demover do destino. Pai quedou impassível, qual um pedaço de tronco morto,
incapaz de pronunciar a última palavra – sim, pouco tempo depois morreu de
“causa natural”. Meus irmãos já haviam ganhado o mundo. Sendo o mais novo,
deveria seguir os seus passos – me sentia compelido a isso; uma força estranha
me conduzia –, contrariando a vontade de mãe: “Meu filho, seus irmãos já foram.
Você vai me deixar sozinha com o seu pai? Eu não vou aguentar”. Ou seria assim,
ou não seria nada. Nenhuma ruptura é prudente e aceitável, pelo menos para quem
fica. Uma légua e meia de caminhada me fez titubear. Se houvesse carro, ou
qualquer transporte veloz, não teria tempo de pensar no fracasso. Tia
Bernardina me esperava em Quixadá, para, logo, me despachar na rodoviária e me
apresentar, como disse, “às bonanças de uma vida nova”. Ela atuava como um
desses coiotes que fazem a travessia aos Estados Unidos. Pode acreditar, ela
recebia para isso. Eu tive que liberar cerca de quatrocentos reais, dinheiro de
hoje – a minha economia de uma vida inteira de pobreza –, para que ela
comprasse as passagens e me arranjasse um lugar para ficar na cidade encantada,
Fortaleza. De lá, eu não sabia nada, só que a vivência seria de muito trabalho,
se quisesse mesmo sobreviver; senão, seria atropelado e morto pela realidade.
Em 25 de março de 1980, cheguei abobalhado e feliz. Botei o pé direito no solo
sagrado e me benzi. Um senhor corpulento, de nome Inácio, me levou para a rua
Princesa Isabel, no centro da cidade. Na viagem, ele largou duas palavras no
meu peito: “Você é louco, rapaz?!”; “Fortaleza está um caos!”. Ou seja, uma
bela recepção, digna de um errante moribundo. Titia me alojou numa espécie de
pensionato, onde morava a senhora Liduína, uma velhota sem filhos e sem marido,
que alugava os cômodos para “cuidar” da vida dos fregueses, para ocupar o tempo
ocioso e ganhar um trocado para o dia a dia. A velha avarenta contava os pães
que eu comia; só eram permitidos, no máximo, dois por dia. A despesa da casa,
com alimentação, era dividida pelos quatro hóspedes; ela não pagava nada. “Menino,
é assim: sua tia pagou o primeiro mês, mas a partir de maio você deve pagar
cento e cinquenta reais [dinheiro de hoje], mais as despensas da casa, rateada
entre os quatro”. A soma dava, em média, duzentos e cinquenta reais por mês. De
entrada, arrumei um serviço de faz-tudo numa vendinha. Limpava, organizava as
mercadorias e fazia o trabalho que os gatos da vizinhança rejeitavam, o de
espantar os ratos – muitos. O pagamento era in natura e variável; havia
meses que eu recebia cem por semana, ou oitenta, e isso dependia do humor do patrão
espezinhador. Fui me forçando à adaptação, algo muito duro para quem não tem coisa
nenhuma. Como fazia falta o colo de mãe, o aconchego certo depois de um dia de
labuta… Resolvi estudar, por insistência da minha irmã Jandira, que já morava
em Fortaleza há pelo menos dez anos, casada, com filhos, que declarou, certa e
segura, que havia um jeito de se livrar da pressão a que estava submetido: virando
doutor. Apesar de não ter conseguido, ela disse que botava fé em mim. Estudava
à noite, correndo o risco, vez ou outra, de dormir no relento, pois que, se
chegasse depois das oito, a velha era capaz de me deixar do lado de fora.
Felizmente nunca aconteceu, apesar das ameaças. Não tinha dinheiro que desse
sequer para assistir a um filme no São Luiz, então o jeito era se escorar na
porta, fazer cara de mendigo e esperar um trocado, até que juntasse o
necessário para entrar. Foram, talvez, quatro ou cinco vezes que entrei assim. Adorava
os filmes dos Trapalhões, E.T. e De volta para o futuro. Calhava meses
impregnado com a maravilha, sonhando com o dia em que me tornaria ao menos
ajudante do ajudante de limpeza do citado cine. A oportunidade veio quando
contava com um ano e sete meses na Capital. Uma tremenda sorte; surgiu uma vaga
para lanterninha, e eu agarrei com afinco, como se agarrasse um bote
salva-vidas. Assisti de Indiana Jones a Cinema Paradiso. Maldita
ou bendita a hora em que assisti ao belíssimo Cinema Paradiso. Eu me
achava o próprio menino, o protagonista, um salvador da própria sorte. Foram
anos de completa fantasia, preso à promessa de um final feliz. Não abandonei os
estudos. Passei no vestibular para Odontologia, com a ideia ingênua de cuidar
da minha dentadura, de confeccionar a minha prótese, já que, com o tempo da
carestia e com a alimentação e a higiene desordenadas, havia perdido pelo menos
meia dúzia de dentes. Em poucos meses, um anjo me socorreu, o doutor Alcimar. Professor
e cirurgião dos bons, me pegou pelo braço e me ensinou as minucias da arte. O
melhor de tudo é que eu não precisava me aperrear com o dinheiro fugaz, pois
ele me pagava um salário razoável e ainda dava a alimentação. Nessa altura eu
não estava mais no pensionato, e sim num alojamento independente, ligado à
universidade. Para isso, eu não gastava um tostão; minha bolsa servia,
praticamente, para comprar livros, materiais da faculdade e comida boa. Quatro
anos e meio depois eu me formei e passei a trabalhar num novo consultório, no Palácio
Progresso, o prédio mais lindo da cidade, ao lado do meu mestre e amigo Alcimar
Rocha. Deslanchei e arrumei o meu espaço, angariando minha própria clientela,
no bairro de Fátima – numa dessas, encontrei Anadir, que curou e somou flores;
três filhos e um bocado imensurável de amor. Bem, a leitora deve se perguntar
sobre o porquê dessa história condensada, feita em retalhos mal-amanhados. Meu
filho Marcelo me pedia insistentemente para contar a minha trajetória, através
de um livro. Em que pese ser dono das minhas horas, tempo me falta para
escrever uma narrativa longa – teria de renunciar aos preciosos momentos em que
dedico aos meus netos, por exemplo. Além do mais, não sou escritor, mesmo
arriscando amontoar bons versos e prosas aqui e ali. Lógico, eu poderia dizer
muito mais, relatar o dia em que fui mordido por um cachorro de rua; as vezes
que tive de pedir comida de porta em porta; sobre as duas semanas que dormi na
rua; o reencontro e o restinho da jornada de minha mãe, ao meu lado, sendo
acarinhada e mimada. Mas o essencial está aqui. O que importa, de fato, é que resisti,
por sorte ou por obra de um ente divino. Sei que sou exceção. E, por favor, não
me venha com conversa falaciosa de meritocracia. Eu contei com o acaso, com a boa
vontade de algumas e alguns e com os meus princípios, dos quais nunca me
desliguei. Do primeiro ao último dia, fiz um propósito, serei feliz com o que
tenho; com o ânimo de poder, sempre, aprender e recomeçar, se preciso.
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