Manhã
cedo e Maria Amália já andava no corrupio que se lhe tornara ultimamente
habitual. Nada mudara na sua vida, não tinha afazeres ou obrigações novas, no
entanto parecia que o tempo lhe estava sempre a escassear.
Quando
parecia ter encontrado um modo de meter de novo a vida nos eixos, uns dias
depois dava por si novamente a correr para conseguir meter tudo num dia cujas
horas lhe pareciam cada vez mais escassas.
Passou
a levantar-se mais cedo e a deitar-se mais tarde, apesar de parecer uma zombie
durante o dia, cortou as distrações “inúteis” e mesmo assim, nada. Tudo corria
bem durante uns dias e depois voltava a correria por falta de tempo. A sua vida
limitava-se agora apenas ao trabalho, onde estava sempre atrasada para tudo, e
a tratar mal e porcamente da casa e dos filhos.
Um
dia encontrou por acaso a vizinha do piso térreo do prédio de três andares onde
vivia e apesar de há muito não se falarem, devido a uma quezília entre os
filhos que rapidamente se estendera às respetivas famílias, não pôde deixar de
reparar que tinha o mesmo aspeto de morta-viva que via quando calhava olhar
para um espelho e o ar de quem gostaria que o dia tivesse mais horas ou que
houvesse uma tragédia que parasse o mundo, deixando-a então repousar.
Dessa
vez não se falaram, mas com o passar dos dias os encontros tornaram-se mais
frequentes. Parecia até que não se passava um dia em que não dessem de caras
uma com a outra a entrarem ou a saírem do prédio, sempre com um ar esbaforido.
Inevitavelmente acabaram por chegar à fala, esquecida a querela face ao ar de exaustão
que ambas apresentavam.
E
as queixas eram as mesmas para ambas, a sua vida não mudara em nada e de
repente sentiam que lhes faltava o tempo até para as obrigações inadiáveis. É
claro que lá diz o ditado, “em criança o tempo arrasta-se, em jovem caminha e
em adulto corre.” Mas neste caso parecia ter-se convertido subitamente num
Usain Bolt sobrecarregado de esteroides.
E
analisando a situação de Ana, a vizinha, o caso tornava-se ainda mais
incompreensível. Os dois filhos mais velhos tinham saído de casa, ele para um
apartamento próprio e ela para a universidade numa outra cidade, por isso, com
apenas o filho mais novo em casa, o da querela, devia sobrar-lhe tempo para
tudo e mais alguma coisa. Mas não, a correria aumentara para níveis que nem com
três filhos pequenos conhecera.
Enfim,
que podiam fazer? Se calhar era o cansaço que as fazia pensar que andavam mais
azafamadas do que nunca. Mas pensando bem, era como a questão do ovo e da
galinha. Andavam cansadas devido à azáfama contínua ou parecia-lhes que lhes
faltava o tempo por andarem cansadas?
Entretanto,
no piso superior, José Eduardo, refastelado no sofá, assistia a uma das suas
séries favoritas, que gravara nos dias anteriores. Tinha tempo, tinha imenso
tempo antes de ter de sair para o trabalho. E gostava de começar o dia com umas
boas horas de televisão e de descontração, petiscando qualquer coisa, até ter
mesmo de sair. Pena não ter mais umas horas livres por dia...
Isso
recordou-lhe que tinha visita marcada a um apartamento novo para quando saísse
do emprego. Estava ansioso por mudar de casa e esta segunda visita era apenas
para se certificar de que era de facto o seu favorito entre os muitos que vira.
Mas tinha quase a certeza de que o iria comprar e mudar-se o mais rapidamente
possível.
É
claro que colegas de trabalho e amigos iriam estranhar essa compra. Porquê
trocar um belo e espaçoso andar num prédio de apenas três pisos num bom bairro
por um apartamento bem menor num enorme prédio de 15 pisos e três fogos por
andar num bairro muito inferior e bem mais longe do emprego e de bons
restaurantes e distrações? Parecia absurdo, a menos que tivesse sofrido fortes perdas
monetárias e quisesse reduzir o seu nível de vida. Mesmo assim, haveria
certamente alternativas melhores.
Vista
de fora, parecia realmente uma decisão altamente bizarra. O que as pessoas não
sabiam é que ele tinha mesmo de se mudar e para um local com muita gente em permanência.
É
que uns meses antes, após um acidente rodoviário que o deixara em coma durante
duas semanas, descobrira que tinha agora um novo talento, quase um superpoder.
Ao roçar-se casualmente por alguém algumas vezes em dias diferentes, conseguia
roubar-lhes alguns minutos do seu dia, acrescentando-os ao seu.
Foi
o que fizera com Maria Amália e Ana, as únicas vizinhas que encontrava
regularmente. Nunca vira os respetivos maridos e tinha escrúpulos em usar
crianças, por isso estava limitado a duas fontes. Dia após dia, semana após
semana, já conseguira acrescentar ao seu dia quatro horas de uma e três horas e
meia da outra. Mas perante o seu ar de cansaço permanente, receava que não
aguentassem se continuasse a sugar-lhes tempo, tendo pois decidido parar.
O
pior é que se tinha viciado em ter dias longuíssimos e apesar dos acrescentos que
conseguira continuava a achar que o tempo nunca era suficiente para tudo o que
queria fazer.
Mudando-se
para um prédio com 45 fogos e várias pessoas em cada um deles, as suas
hipóteses aumentariam imenso, sobretudo se entrasse e saísse a horas diferentes
para encontrar o máximo de residentes. E havia sempre as reuniões do condómino.
Pressionada pelas suas perguntas incessantes, a agente imobiliária confessara
que havia um ambiente conflituoso no prédio e que as reuniões eram frequentes
para tentarem resolver as inúmeras questões que estavam sempre a surgir.
Sim,
tinha mesmo de se mudar e o mais rapidamente possível. É que o seu objetivo era
vir a ter um dia com 72 horas bem contadas!
Luísa Lopes
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