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quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Agarra que é ladrão

 


Manhã cedo e Maria Amália já andava no corrupio que se lhe tornara ultimamente habitual. Nada mudara na sua vida, não tinha afazeres ou obrigações novas, no entanto parecia que o tempo lhe estava sempre a escassear.

Quando parecia ter encontrado um modo de meter de novo a vida nos eixos, uns dias depois dava por si novamente a correr para conseguir meter tudo num dia cujas horas lhe pareciam cada vez mais escassas.

Passou a levantar-se mais cedo e a deitar-se mais tarde, apesar de parecer uma zombie durante o dia, cortou as distrações “inúteis” e mesmo assim, nada. Tudo corria bem durante uns dias e depois voltava a correria por falta de tempo. A sua vida limitava-se agora apenas ao trabalho, onde estava sempre atrasada para tudo, e a tratar mal e porcamente da casa e dos filhos.

Um dia encontrou por acaso a vizinha do piso térreo do prédio de três andares onde vivia e apesar de há muito não se falarem, devido a uma quezília entre os filhos que rapidamente se estendera às respetivas famílias, não pôde deixar de reparar que tinha o mesmo aspeto de morta-viva que via quando calhava olhar para um espelho e o ar de quem gostaria que o dia tivesse mais horas ou que houvesse uma tragédia que parasse o mundo, deixando-a então repousar.

Dessa vez não se falaram, mas com o passar dos dias os encontros tornaram-se mais frequentes. Parecia até que não se passava um dia em que não dessem de caras uma com a outra a entrarem ou a saírem do prédio, sempre com um ar esbaforido. Inevitavelmente acabaram por chegar à fala, esquecida a querela face ao ar de exaustão que ambas apresentavam.

E as queixas eram as mesmas para ambas, a sua vida não mudara em nada e de repente sentiam que lhes faltava o tempo até para as obrigações inadiáveis. É claro que lá diz o ditado, “em criança o tempo arrasta-se, em jovem caminha e em adulto corre.” Mas neste caso parecia ter-se convertido subitamente num Usain Bolt sobrecarregado de esteroides.

E analisando a situação de Ana, a vizinha, o caso tornava-se ainda mais incompreensível. Os dois filhos mais velhos tinham saído de casa, ele para um apartamento próprio e ela para a universidade numa outra cidade, por isso, com apenas o filho mais novo em casa, o da querela, devia sobrar-lhe tempo para tudo e mais alguma coisa. Mas não, a correria aumentara para níveis que nem com três filhos pequenos conhecera.

Enfim, que podiam fazer? Se calhar era o cansaço que as fazia pensar que andavam mais azafamadas do que nunca. Mas pensando bem, era como a questão do ovo e da galinha. Andavam cansadas devido à azáfama contínua ou parecia-lhes que lhes faltava o tempo por andarem cansadas?

Entretanto, no piso superior, José Eduardo, refastelado no sofá, assistia a uma das suas séries favoritas, que gravara nos dias anteriores. Tinha tempo, tinha imenso tempo antes de ter de sair para o trabalho. E gostava de começar o dia com umas boas horas de televisão e de descontração, petiscando qualquer coisa, até ter mesmo de sair. Pena não ter mais umas horas livres por dia...

Isso recordou-lhe que tinha visita marcada a um apartamento novo para quando saísse do emprego. Estava ansioso por mudar de casa e esta segunda visita era apenas para se certificar de que era de facto o seu favorito entre os muitos que vira. Mas tinha quase a certeza de que o iria comprar e mudar-se o mais rapidamente possível.

É claro que colegas de trabalho e amigos iriam estranhar essa compra. Porquê trocar um belo e espaçoso andar num prédio de apenas três pisos num bom bairro por um apartamento bem menor num enorme prédio de 15 pisos e três fogos por andar num bairro muito inferior e bem mais longe do emprego e de bons restaurantes e distrações? Parecia absurdo, a menos que tivesse sofrido fortes perdas monetárias e quisesse reduzir o seu nível de vida. Mesmo assim, haveria certamente alternativas melhores.

Vista de fora, parecia realmente uma decisão altamente bizarra. O que as pessoas não sabiam é que ele tinha mesmo de se mudar e para um local com muita gente em permanência.

É que uns meses antes, após um acidente rodoviário que o deixara em coma durante duas semanas, descobrira que tinha agora um novo talento, quase um superpoder. Ao roçar-se casualmente por alguém algumas vezes em dias diferentes, conseguia roubar-lhes alguns minutos do seu dia, acrescentando-os ao seu.

Foi o que fizera com Maria Amália e Ana, as únicas vizinhas que encontrava regularmente. Nunca vira os respetivos maridos e tinha escrúpulos em usar crianças, por isso estava limitado a duas fontes. Dia após dia, semana após semana, já conseguira acrescentar ao seu dia quatro horas de uma e três horas e meia da outra. Mas perante o seu ar de cansaço permanente, receava que não aguentassem se continuasse a sugar-lhes tempo, tendo pois decidido parar.

O pior é que se tinha viciado em ter dias longuíssimos e apesar dos acrescentos que conseguira continuava a achar que o tempo nunca era suficiente para tudo o que queria fazer.

Mudando-se para um prédio com 45 fogos e várias pessoas em cada um deles, as suas hipóteses aumentariam imenso, sobretudo se entrasse e saísse a horas diferentes para encontrar o máximo de residentes. E havia sempre as reuniões do condómino. Pressionada pelas suas perguntas incessantes, a agente imobiliária confessara que havia um ambiente conflituoso no prédio e que as reuniões eram frequentes para tentarem resolver as inúmeras questões que estavam sempre a surgir.

Sim, tinha mesmo de se mudar e o mais rapidamente possível. É que o seu objetivo era vir a ter um dia com 72 horas bem contadas!

Luísa Lopes

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