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quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Que graça, não?!

 

 

Graça era do tipo renitente, implicante. Não comprava fiado. Não arrumava crédito. Não fazia escolhas. Não se demorava no supermercado. Não retocava a sobrancelha, nem fazia escova. Não era amiga de ninharias ou de coisas. Não confiava nos outros. Não adulava o marido. Não acreditava em destino. Não lia horóscopos. Não tolerava arruaça e briga sem sentido. Não atendia o telefone. Não tomava banho nos domingos. Não saía sem necessidade. Não extrapolava o tempo no banco ou na rua – para não ser reconhecida. Não trocava de bolsa. Não se queixava do governo. Não entendia de política. Não gostava do PT. Não prestava atenção aos pormenores. Não gostava de pesquisar. Não controlava o dedo para compartilhar fake news. Não gostava de ler. Não queria tomar a vacina – mas foi obrigada pelo filho comunista, que “estava enfeitiçado pelo cão”. Não confiava em “vacina” feita no período de um ano – somente em cloroquina e afins. Não falava alto. Não falava baixo. Não suportava parte da igreja comunista. Não assistia à missa na igreja do bairro – porque o padre era comunista. Não tolerava comunista; comunismo e “absurdos” – incluía, no bolo fecal do ódio que apodreceu o seu coração, negros, gays e simpatizantes. Não sabia o que era comunismo – apenas que era coisa do demônio. Não gostava do papa – comunista. Não confiava na irmã – comunista. Não falava com o porteiro. Não cumprimentava o zelador – deixava-o falando com as paredes. Não gostava de bichos – de todo tipo, inclusive de gente moradora de rua. Não se achava fraca. Não se achava forte. Não era adepta de seitas – mas flertava com a maçonaria, com o olavismo e o bolsonarismo; com suas “teorias” e provocações. Não aturava Cuba e aliados. Não gostava do Norte do Brasil. Não gostava mais dos desertores, que antes amava – Sérgio Moro, Mandetta. Não vestia vermelho. Não tomava qualquer bebida rubra. Não lembrava que seu sangue era vermelho – felizmente. Não lia romances – todos feitos por vagabundos, comunistas. Não assistia à Globo. Não falava com xs amigxs do filho. Não aceitava namorico do filho com mulher com cabelo no sovaco. Não aceitava namorico com mulher com o cabelo pintado. Não aceitava namorico com mulher moderninha. Não sabia que o filho não gostava de mulher – sexualmente. Não queria saber, tampouco. Não achava que poderia contrair a Covid – nem o marido e o filho. Não usava a máscara corretamente – por birra. Não concordava com as roupas extravagantes do filho. Não aceitava a faculdade de letras do filho. Não dava dinheiro ao filho – para ele não se empolgar em sodomia. Não dormia bem. Não namorava com o marido há dois anos. Não tinha coragem de acabar o casamento – porque senão poderia perder as benesses e o nome de ser esposa do major Aquino. Não achava o marido um bom militar – porque não quis um cargo no governo. Não levava café ou água ao marido – só quando estava com bom humor; quase nunca. Não participava das reuniões de condomínio – porque era infestada por comunistas. Não concordava com nada que onerasse o seu bolso – o bolso do marido. Não tinha tempo para ajudar as pessoas carentes. Não tinha tempo a perder com pessoas que se diziam carentes. Não acreditava que todos esses “vagabundos” fossem carentes.Não dê o peixe, ensine a pescar…”. Não ensinava a pescar, entretanto – só falava que era preciso fazer isso. Não falava com estranhos. Não falava com conhecidos – tão-somente em estrita necessidade; caso de vida ou morte, até porque a família era consumida por escandalosos comunistas. Não compactuava com bandalheira. Não achava que o presidente fazia bandalheira. Não sabia o que é democracia – apesar de, nos últimos tempos, ser a palavra que mais saía de sua boca. Não participava da “vagabundagem” da coisa pública. Não suportava o SUS. Não tolerava qualquer slogan de governo petista – “para todos”; “Minha casa, minha vida” etc. Não conhecia, nem fez questão de conhecer, os ministros do STF – porque são comunistas e estão mancomunados com o PT. Não se incomodou com a gripezinha. Agravou-se a situação, que virou uma senhora gripe, contra ela, o marido e o filho. Todos ficaram acamados. Logo, foram ao hospital. O marido, direto para a UTI. Não aguentou, mesmo tendo tomado uma dose da vacina; faleceu com sete dias de internação. O filho por pouco não tombou. Ela assistia a tudo, calada, apática. Não podia dizer não ao SUS. Cedeu à morte em vida. Que graça, não?!   


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