Graça
era do tipo renitente, implicante. Não comprava fiado. Não arrumava crédito.
Não fazia escolhas. Não se demorava no supermercado. Não retocava a sobrancelha,
nem fazia escova. Não era amiga de ninharias ou de coisas. Não confiava nos
outros. Não adulava o marido. Não acreditava em destino. Não lia horóscopos.
Não tolerava arruaça e briga sem sentido. Não atendia o telefone. Não tomava
banho nos domingos. Não saía sem necessidade. Não extrapolava o tempo no banco
ou na rua – para não ser reconhecida. Não trocava de bolsa. Não se queixava do
governo. Não entendia de política. Não gostava do PT. Não prestava atenção aos
pormenores. Não gostava de pesquisar. Não controlava o dedo para compartilhar fake
news. Não gostava de ler. Não queria tomar a vacina – mas foi obrigada pelo
filho comunista, que “estava enfeitiçado pelo cão”. Não confiava em “vacina”
feita no período de um ano – somente em cloroquina e afins. Não falava alto.
Não falava baixo. Não suportava parte da igreja comunista. Não assistia à missa
na igreja do bairro – porque o padre era comunista. Não tolerava comunista;
comunismo e “absurdos” – incluía, no bolo fecal do ódio que apodreceu o seu
coração, negros, gays e simpatizantes. Não sabia o que era comunismo – apenas
que era coisa do demônio. Não gostava do papa – comunista. Não confiava na irmã
– comunista. Não falava com o porteiro. Não cumprimentava o zelador – deixava-o
falando com as paredes. Não gostava de bichos – de todo tipo, inclusive de
gente moradora de rua. Não se achava fraca. Não se achava forte. Não era adepta
de seitas – mas flertava com a maçonaria, com o olavismo e o bolsonarismo; com
suas “teorias” e provocações. Não aturava Cuba e aliados. Não gostava do Norte
do Brasil. Não gostava mais dos desertores, que antes amava – Sérgio Moro,
Mandetta. Não vestia vermelho. Não tomava qualquer bebida rubra. Não lembrava
que seu sangue era vermelho – felizmente. Não lia romances – todos feitos por
vagabundos, comunistas. Não assistia à Globo. Não falava com xs amigxs do
filho. Não aceitava namorico do filho com mulher com cabelo no sovaco. Não
aceitava namorico com mulher com o cabelo pintado. Não aceitava namorico com
mulher moderninha. Não sabia que o filho não gostava de mulher – sexualmente.
Não queria saber, tampouco. Não achava que poderia contrair a Covid – nem o
marido e o filho. Não usava a máscara corretamente – por birra. Não concordava
com as roupas extravagantes do filho. Não aceitava a faculdade de letras do
filho. Não dava dinheiro ao filho – para ele não se empolgar em sodomia. Não
dormia bem. Não namorava com o marido há dois anos. Não tinha coragem de acabar
o casamento – porque senão poderia perder as benesses e o nome de ser esposa do
major Aquino. Não achava o marido um bom militar – porque não quis um cargo no
governo. Não levava café ou água ao marido – só quando estava com bom humor; quase
nunca. Não participava das reuniões de condomínio – porque era infestada por
comunistas. Não concordava com nada que onerasse o seu bolso – o bolso do
marido. Não tinha tempo para ajudar as pessoas carentes. Não tinha tempo a
perder com pessoas que se diziam carentes. Não acreditava que todos esses
“vagabundos” fossem carentes. “Não dê o peixe, ensine a pescar…”.
Não ensinava a pescar, entretanto – só falava que era preciso fazer isso. Não
falava com estranhos. Não falava com conhecidos – tão-somente em estrita
necessidade; caso de vida ou morte, até porque a família era consumida por escandalosos
comunistas. Não compactuava com bandalheira. Não achava que o presidente fazia
bandalheira. Não sabia o que é democracia – apesar de, nos últimos tempos, ser
a palavra que mais saía de sua boca. Não participava da “vagabundagem” da coisa
pública. Não suportava o SUS. Não tolerava qualquer slogan de governo
petista – “para todos”; “Minha casa, minha vida” etc. Não conhecia, nem fez
questão de conhecer, os ministros do STF – porque são comunistas e estão
mancomunados com o PT. Não se incomodou com a gripezinha. Agravou-se a situação,
que virou uma senhora gripe, contra ela, o marido e o filho. Todos ficaram
acamados. Logo, foram ao hospital. O marido, direto para a UTI. Não aguentou,
mesmo tendo tomado uma dose da vacina; faleceu com sete dias de internação. O
filho por pouco não tombou. Ela assistia a tudo, calada, apática. Não podia
dizer não ao SUS. Cedeu à morte em vida. Que graça, não?!
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