Sempre
se sentira diferente do resto da família e não era uma simples ideia sua, uma
mania, era mesmo muito diferente. Ainda bem miúda, durante umas férias de verão
no campo, em casa dos avós maternos, uma prima um pouco mais velha do que ela e
muito interessada em coisas da natureza começara até a chamar-lhe Cuco. E o
nome pegara prontamente, alastrando rapidamente para fora do enorme círculo
familiar.
E
tendo pedido detalhes sobre o que eram os cucos fora forçada a admitir que se
sentia quase sempre como uma cria de cuco, enfiada à sorrelfa por pais
desconhecidos no ninho de umas aves bem mais belas e elegantes. A única diferença
é que não açambarcava as atenções e mimos de todos, muito pelo contrário.
Senão,
vejamos. Era a única morena numa família de ruivos e louros, a única atarracada
entre irmãos e primos esbeltos, a única desajeitada num clã de atletas e
dançarinos, a única tímida numa tribo de extrovertidos. Até as irmãs e primas
mais novas tinham mais graça, mais expediente do que ela.
Tivera
esperança de que tudo melhorasse quando começasse a ir à escola, mas com uma
irmã apenas um ano mais velha e outra um ano mais nova, ambas alunas excelentes
e muito populares, as comparações eram inevitáveis e nunca a seu favor, claro
está.
Não
encontrara sequer uma única alma afim e percorrera a Primária e uma boa parte
do Liceu sem amigos, sempre solitária, isolando-se por detrás de uma enorme
franja a tapar-lhe os olhos e de uma atitude desdenhosa, fazendo questão de
nunca ser a melhor da turma apesar de se saber suficientemente esperta para
isso, tudo para não dar nas vistas. Sim, passar despercebida era o seu lema.
Um
dia em que fora forçada a acompanhar a mãe e irmãs a um Centro Comercial para
comprarem roupa, despachou-se logo, como sempre, e conseguiu convencer a mãe a
deixá-la esperar no café em que sempre terminavam essas excursões, ou antes,
essas provações. Instalou-se na única mesa vazia, junto a um grupo de jovens
que juntara várias mesas onde tinham instalado dois ou três portáteis, tirando
proveito do Wi-Fi gratuito da zona.
A
conversa era animada e deu por si a escutá-los, disfarçadamente, fingido ler o
livro que levara consigo para aguentar as longas esperas enquanto as irmãs
provavam tudo e mais alguma coisa.
O
seu contacto com a Internet era muito esporádico, usava-a apenas em pesquisas
para a escola e nunca percebera o fascínio das irmãs por Facebooks, Twitters e
quejandos. Fazia-lhe até imensa confusão toda essa cena de amigos, likes e
isso. Acima de tudo não entendia como é que pessoas com um mínimo de juízo pespegavam
todos os detalhes da sua vida, até mesmo os mais íntimos, num local onde qualquer
desconhecido os poderia ler.
Mas
ao ouvir aquele grupo descobriu fascinada todo um novo mundo de perfis incógnitos
e possivelmente falsos, páginas dedicadas a “deitar abaixo”, intrigas,
vinganças, comentários maldosos e, acima de tudo, o poder que algumas pessoas
pareciam ter sobre aqueles jovens e não só.
Era
todo um mundo que se lhe abria subitamente e mal podia esperar para chegar a
casa para o começar a explorar, sobretudo agora que herdara o portátil de uma
das irmãs mais velhas, já universitária, e não precisava de continuar a
partilhar o computador da família.
Nos
dias e semanas seguintes dedicou-se a fundo a aprender o máximo que pôde sobre
redes sociais, criação de perfis credíveis, navegação anónima, modo de se
ocultar dos pais e irmãs, caso estes tivessem a ideia peregrina de investigarem
o que fazia no computador, escolha de sites, pedidos de amizade a partir dos
perfis que inventara, enfim, toda uma campanha de preparação.
Finalmente,
um pouco a medo, lançou um ataque inicialmente velado e depois progressivamente
mais feroz contra uma colega de turma que achava particularmente irritante,
sempre a julgar-se a melhor em tudo, sempre a gabar-se das suas muitas conquistas
e amores. Com grande espanto seu, resultou. E teve o enorme prazer de ver as supostas
“amigas” da colega a virarem-lhe as costas e a criticarem o que até então
tinham aplaudido.
Sentiu-se
realizada, descobrira finalmente a sua vocação. Fazia agora parte de uma enorme
(e anónima) tribo, vasculhando a Internet à procura de alvos, atacando onde e
quando podia, deleitando-se com o seu poder oculto mas bem real, vingando-se,
assim, de ter sido durante tanto tempo o Cuco, o patinho feio numa família de
cisnes garbosos.
Tinha
agora o seu nicho, metamorfoseara-se, saíra do casulo onde sufocara durante
tantos anos, alcançara o seu destino. Descobriu que tinha uma tendência inata
para comentários mordazes que acertavam em cheio, tornara-se até uma das
melhores no que fazia, espalhando terror e pânico onde quer que o nome que
escolhera para os ataques mais acerbos — Cuculus, claro está — aparecia.
Luísa Lopes
Photo by Rosa Virginia on Unsplash
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