Tinha Desirée uma filha, que um bibelô em tudo lembrava, nem tanto pela pele alva
e delicadeza de traços, mais pela obsessão da mãe extremosa, como se vestisse a
menina de plástico bolha.
Havia em Desirée motivos. Marie de Moi, assim chamava seu pertence, foi concebida
pelo acaso de uma noite com um forasteiro, dito marinheiro, que bem antes do sol nascer,
zarpou por mares sem fim, deixando Desirée um pote de geleia de tristeza, decepção e raiva,
por ter guardado suas virtudes para um aventureiro de péssimas intenções.
Ah, é? Decidiu criar a menina sozinha, como sozinha sempre se viu, destino de uma família
desfeita pelo ciclo natural da vida, um tanto exagerado, já que a partida trágica dos pais e irmão
foi mais precoce do que o roteiro da normalidade pudesse determinar.
E Desirée zarpou para dentro de si, virando e se virando para honrar a raiva do amante fugaz e
sumidão. Fez de tudo de trabalho e estudo, sem largar do seu o bibelô pendurado pra lá e pra cá.
Sensível, esperta, criativa e neurótica pitoresca, foi dar com os talentos numa agência de
propaganda, onde seu jeito excêntrico e olhos que nunca piscavam cativaram os diretores, pares
e clientes, a ponto de admití-la mesmo com a filha grudada no colo, dia sim, dia sim.
Como um apêndice fofinho, atração djugo-djugo do escritório.
E assim, tanto quanto a profissional redatora Desirée, crescia a menina para vida, sem nunca
ter desgrudado da pele da mãe, coisa já normalizada pelos generosos diretores, chefes e colegas,
que as acolheram como se as duas uma só fossem.
Marie de Moi já avançava nos seus cinco anos, sob a proteção do colo materno. Aqui não vai
metáfora alguma. Dormia nos braços de Desirée, comia nos braços de Desirée, aprendeu
o bê-a-bá nos braços de Desirée. A mãe só a largava para que um velho tio distante, o Dr.
Maubert, de consultório nos arredores igualmente distantes, examinasse a garota, acompanhasse seu
desenvolvimento e oferecesse à Desirée confiança, compreensão e nenhum aconselhamento sobre
como a mãe deveria ou não deveria cuidar da criança. Era um guru preguiçoso. Não se coçava
para alertar sobre a doideira de Desirée. Daria muito trabalho.
Um dia, Desirée irrompe na sala do supervisor Jean Paul, claro, com Marie de Moi a tiracolo.
- Surto de varicela na cidade! Vou precisar viajar para vacinar Marie de Moi. Só lá tem a vacina.
- Como assim, Desirée?
- A varicela! A varicela! Contagiosa! Contagiosa!
- Mas ela não está imunizada pela vacina tetra viral? Não tomou quando bebezinha?
- Claro! Mas é preciso reforço! A varicela! A varicela! Contagiosa! Contagiosa!
- Calma, Desirée. Para de chorar. A menina está com algum sintoma?
- Não. Mas vai ter. Feridas por todo corpo. A varicela! A varicela! Contagiosa! Contagiosa!
- Olha, Desirée. Eu tenho filhos pequenos. Vou ligar para o meu pediatra e você liga para o seu.
E a gente faz o que deve ser feito.
Jean Louis ligou para o Dr. Aramis, que o tratou como um chato.
- Tem surto nenhum. Um caso isolado a 500 km daqui. Se tiver, eu vou ser o primeiro avisar.
Fica na sua.
Constrangido, Jean Paul mal desligou o telefone.
- A varicela! A varicela! Contagiosa! Contagiosa!
- Calma, Desirée. Falou com o pediatra?
- Confirmou! A varicela! A varicela! Contagiosa! Contagiosa! Vou encontrar meu médico,
só ele tem vacina!
E com Marie de Moi agarrada aos seus prantos, sumiu pelo escritório aos gritos.
- A varicela! A varicela!
(A)moral da história 1: as pessoas estão assim. A verdade das coisas está no
que desejam escutar.
(A)moral da história 2: bater palma para maluco dançar enche o saco.
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