Estou
internamente deteriorado. A carcaça é a mesma joça de sempre; servível. Magda
não aceita e pergunta o que me aconteceu. Diz que meu olhar é vago e que não
encontra o brilho de anos atrás. Repeti diversas vezes que não tem nada a ver
com ela. Digo e penso: “O tempo e os acontecimentos são os responsáveis por essa
tragédia, ok?!”. Ela odeia quando termino uma frase com “ok”, porque “não está
nada ok!”. Tento evitar, mas é mais forte que eu. O que me deixa bastante
chateado é quando ela declara, cheia de si, que não tenho motivos para me abater
e, por isso, arruinar as nossas vidas. Ou seja, eu seria o agente para a
desgraça do meu lugar. “Robério, temos casa, dois filhos lindos, Hélder e
Luiza, e um monte de bichinhos”, que, naturalmente, agem como receptores e
catalisadores de nossas energias. Eu creio nisso. Poderia ser muito pior. Mas a
questão, e isso não entra na cabecinha de Magda, é que antes da pandemia
tínhamos como sair, admirar o pôr do sol na ponte dos ingleses, por exemplo;
arrumar as malas e seguir sem destino, numa sexta, rumo a qualquer praia do sol
poente. Estamos abafados e confinados num cubículo de 110 metros quadrados. Por
mais que tenhamos guarida, perdemos o aconchego da casa de meu pai, um velhinho
solitário de setenta e sete anos; a rede de apoio de nossa família, que
igualmente se enclausurou desde o início do pandemônio. Magda pergunta se
nossas vidas não são suficientes para me fazer um homem realizado. Para não
encompridar a conversa, sou obrigado a dizer que sim; que, no entanto, por
razões insondáveis, não consigo desvendar a minha fraqueza. Ela pede que eu
seja “coerente”; que eu seja a “figura da fortaleza” para nossos filhos. Cansa-me
essa insistência para manter o status do qual não sou capaz, neste
momento. Nossos filhos não podem descobrir que o pai sofre? Nossos filhos são
bichinhos de pelúcia, lindos por fora e ocos por dentro? Eu não teria condições
de permanecer fingindo, como se nada houvesse acontecido. No último domingo,
dei uma volta com Hélder; fomos ao mercadinho comprar uns poucos mantimentos.
Meu filho, esperto, já com dez anos, notou que o papai está triste. Ele inventa
piruetas, faz palhaçadas para me distrair. Nesse curto caminho, puxou a minha
mão, para me guiar, e parou na pracinha, a ver os passarinhos. “Olha, papai,
aquele ali; ele parece que está querendo namorar, voando bem rapidão, de uma
árvore para a outra”. Eu me apoiava com hesitação no banquinho. Achava que o assento,
por ser público, estava infestado de vírus, sendo apoio para as dormidas dos
moradores de rua, inclusive com um a cerca de cinquenta metros de distância,
nos observando. O homem quis se aproximar, decerto para pedir algum trocado, e
eu arrastei o meu filho com uma força descomunal, quase deslocando o seu
bracinho fino; e o menino, assustado, me falou: “Papai, o que está acontecendo?
Tá doendo. O senhor vai me desmontar”. Ele apontou para um de seus bonecos de
Lego, que levava na mão. O medo é uma força sobrenatural, que me cega
instantaneamente. O fato poderia ser comparado a um blecaute de consciência.
Fiquei paralisado por uns dois minutos, já longe do homem, que entendera o
recado. Eu suava bicas; estava com a roupa ensopada. E, quando estou assim,
Hélder me rejeita, diz que eu pareço uma gosma pegajosa. Lento, me recuperando
ainda do incidente, meu chefe me liga – isso mesmo, em pleno domingo! Deixei
que o celular tocasse umas cinco vezes, para ver se o maluco desistia. Mas não,
tive de atendê-lo. “Pois não, senhor Aloísio, em que posso ser útil?”. Disse
isso com a voz arrastada, a fim de mostrar-lhe o meu descontentamento. Não é
possível, só pode ser uma mórbida tara. Já não bastava ele me ligar cinquenta
vezes por dia durante a semana? A maldição é que, depois do home office,
o troço piorou. Eu não estou ao seu dispor ao pé de sua mesa para apagar os
fogos que ele inventa de atiçar. “Robério, não tem jeito, eu preciso que você
esteja aqui amanhã” – sim, ele falava do escritório. “Sabe por quê? Bem, a
história é longa e eu não queria atrapalhar o seu domingo. Para resumir: o
Otávio vai sair, pediu as contas, e exigiu que eu lhe pagasse tintim por tintim,
porque senão colocaria a boca no trombone. Você tem noção?!”. Eu parei por um
tempo extasiado, mudo, e o senhor Aloísio ecoava o meu nome, me chamando.
Otávio é mau-caráter, disso tudo mundo sabe; mas se equipararia em trambiques
ao senhor Aloísio? Suponho que sim. Um fingia que não sabia das falcatruas do
outro, e passaram assim longos dez anos – antes de eu chegar à empresa, o mau-caráter
funcionário já estava lá. “Senhor Aloísio, o senhor sabe, eu não devo sair de
casa; estamos na terceira onda da pandemia, dois parentes meus faleceram; um
amigo muito próximo também. Estamos muito apreensivos. Eu posso fazer tudo pela
internet, de casa. Fique tranquilo”. Eu estava em polvorosa, tremendo de
nervoso, e Hélder, condoído, apertava a minha mão, chamando baixinho: “Papai,
vamos, por favor!”. De fato, eu poderia ter um piripaque ali e deixar o meu
filho em maus lençóis. “Robério, quando eu mais preciso de você não posso
contar com a sua ajuda. Esse cara quer me ferrar! Você entendeu que ele pode me
botar na cadeia?”. Quase pulou da minha boca: “O que eu tenho com isso?”. Eu
desejava, naquele instante, que a terra se abrisse e, para mim, pouco me importava
o que sucederia ao meu sinistro chefe. “Bem, o senhor sabe que eu tenho
inúmeras comorbidades; tenho filhos pequenos e não quero morrer por um maldito
vírus. Eu já disse ao senhor que farei tudo, até videoconferência, se for preciso,
para resolvermos o assunto”. “Olha, Robério, se esse negócio não funcionar
amanhã, impreterivelmente, você será o responsável por implodir a empresa.
Fique certo disso!”. Desliguei puto por ter de responder, segundo as normas da
boa convivência, um simples: “Tudo bem”. Faltou-me coragem. Tudo péssimo, como
Magda diz; a realista. Na verdade, daí em diante, eu estava sendo levado pelo
meu filho, que amofinara de algum desejo traquino. Íamos chutando pedrinhas no
chão, sem nos falarmos. Hélder estava visivelmente triste, irrequieto. Será que
ele poderia ser acometido pelo meu desgosto? Ao longe, vislumbrávamos um
parquinho de um condomínio. Lá estavam o pai e um menino, da mesma idade de
Hélder. Quedamos atônitos, olhando a vida em abundância, por alguns segundos,
até que o pai zeloso nos notou e arrancou o filho de nossas vistas. Faltava-nos
a fortuna da liberdade, da paz. As ruas estavam cada vez mais cheias de degredados
da sorte. Eram zumbis à espera de um novo fenecimento. Dessa vez, o mal estava
implacável em sua sina e eu não via saída. Mandei uma mensagem para o meu
chefe, depois de consultar a poupança. Daria para viver com uma ligeira margem
por um ano, pelo menos. Sem contar que poderia fazer uns bicos. Pedi, com educação,
que o senhor Aloísio se esquecesse de mim e me desse, bem direitinho, as minhas
contas. Passaria a tempestade em relativa calma; um motivo a menos para tombar
na terra dos mortos.
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