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segunda-feira, 19 de julho de 2021

Um miniensaio sobre a nova cegueira


Estou internamente deteriorado. A carcaça é a mesma joça de sempre; servível. Magda não aceita e pergunta o que me aconteceu. Diz que meu olhar é vago e que não encontra o brilho de anos atrás. Repeti diversas vezes que não tem nada a ver com ela. Digo e penso: “O tempo e os acontecimentos são os responsáveis por essa tragédia, ok?!”. Ela odeia quando termino uma frase com “ok”, porque “não está nada ok!”. Tento evitar, mas é mais forte que eu. O que me deixa bastante chateado é quando ela declara, cheia de si, que não tenho motivos para me abater e, por isso, arruinar as nossas vidas. Ou seja, eu seria o agente para a desgraça do meu lugar. “Robério, temos casa, dois filhos lindos, Hélder e Luiza, e um monte de bichinhos”, que, naturalmente, agem como receptores e catalisadores de nossas energias. Eu creio nisso. Poderia ser muito pior. Mas a questão, e isso não entra na cabecinha de Magda, é que antes da pandemia tínhamos como sair, admirar o pôr do sol na ponte dos ingleses, por exemplo; arrumar as malas e seguir sem destino, numa sexta, rumo a qualquer praia do sol poente. Estamos abafados e confinados num cubículo de 110 metros quadrados. Por mais que tenhamos guarida, perdemos o aconchego da casa de meu pai, um velhinho solitário de setenta e sete anos; a rede de apoio de nossa família, que igualmente se enclausurou desde o início do pandemônio. Magda pergunta se nossas vidas não são suficientes para me fazer um homem realizado. Para não encompridar a conversa, sou obrigado a dizer que sim; que, no entanto, por razões insondáveis, não consigo desvendar a minha fraqueza. Ela pede que eu seja “coerente”; que eu seja a “figura da fortaleza” para nossos filhos. Cansa-me essa insistência para manter o status do qual não sou capaz, neste momento. Nossos filhos não podem descobrir que o pai sofre? Nossos filhos são bichinhos de pelúcia, lindos por fora e ocos por dentro? Eu não teria condições de permanecer fingindo, como se nada houvesse acontecido. No último domingo, dei uma volta com Hélder; fomos ao mercadinho comprar uns poucos mantimentos. Meu filho, esperto, já com dez anos, notou que o papai está triste. Ele inventa piruetas, faz palhaçadas para me distrair. Nesse curto caminho, puxou a minha mão, para me guiar, e parou na pracinha, a ver os passarinhos. “Olha, papai, aquele ali; ele parece que está querendo namorar, voando bem rapidão, de uma árvore para a outra”. Eu me apoiava com hesitação no banquinho. Achava que o assento, por ser público, estava infestado de vírus, sendo apoio para as dormidas dos moradores de rua, inclusive com um a cerca de cinquenta metros de distância, nos observando. O homem quis se aproximar, decerto para pedir algum trocado, e eu arrastei o meu filho com uma força descomunal, quase deslocando o seu bracinho fino; e o menino, assustado, me falou: “Papai, o que está acontecendo? Tá doendo. O senhor vai me desmontar”. Ele apontou para um de seus bonecos de Lego, que levava na mão. O medo é uma força sobrenatural, que me cega instantaneamente. O fato poderia ser comparado a um blecaute de consciência. Fiquei paralisado por uns dois minutos, já longe do homem, que entendera o recado. Eu suava bicas; estava com a roupa ensopada. E, quando estou assim, Hélder me rejeita, diz que eu pareço uma gosma pegajosa. Lento, me recuperando ainda do incidente, meu chefe me liga – isso mesmo, em pleno domingo! Deixei que o celular tocasse umas cinco vezes, para ver se o maluco desistia. Mas não, tive de atendê-lo. “Pois não, senhor Aloísio, em que posso ser útil?”. Disse isso com a voz arrastada, a fim de mostrar-lhe o meu descontentamento. Não é possível, só pode ser uma mórbida tara. Já não bastava ele me ligar cinquenta vezes por dia durante a semana? A maldição é que, depois do home office, o troço piorou. Eu não estou ao seu dispor ao pé de sua mesa para apagar os fogos que ele inventa de atiçar. “Robério, não tem jeito, eu preciso que você esteja aqui amanhã” – sim, ele falava do escritório. “Sabe por quê? Bem, a história é longa e eu não queria atrapalhar o seu domingo. Para resumir: o Otávio vai sair, pediu as contas, e exigiu que eu lhe pagasse tintim por tintim, porque senão colocaria a boca no trombone. Você tem noção?!”. Eu parei por um tempo extasiado, mudo, e o senhor Aloísio ecoava o meu nome, me chamando. Otávio é mau-caráter, disso tudo mundo sabe; mas se equipararia em trambiques ao senhor Aloísio? Suponho que sim. Um fingia que não sabia das falcatruas do outro, e passaram assim longos dez anos – antes de eu chegar à empresa, o mau-caráter funcionário já estava lá. “Senhor Aloísio, o senhor sabe, eu não devo sair de casa; estamos na terceira onda da pandemia, dois parentes meus faleceram; um amigo muito próximo também. Estamos muito apreensivos. Eu posso fazer tudo pela internet, de casa. Fique tranquilo”. Eu estava em polvorosa, tremendo de nervoso, e Hélder, condoído, apertava a minha mão, chamando baixinho: “Papai, vamos, por favor!”. De fato, eu poderia ter um piripaque ali e deixar o meu filho em maus lençóis. “Robério, quando eu mais preciso de você não posso contar com a sua ajuda. Esse cara quer me ferrar! Você entendeu que ele pode me botar na cadeia?”. Quase pulou da minha boca: “O que eu tenho com isso?”. Eu desejava, naquele instante, que a terra se abrisse e, para mim, pouco me importava o que sucederia ao meu sinistro chefe. “Bem, o senhor sabe que eu tenho inúmeras comorbidades; tenho filhos pequenos e não quero morrer por um maldito vírus. Eu já disse ao senhor que farei tudo, até videoconferência, se for preciso, para resolvermos o assunto”. “Olha, Robério, se esse negócio não funcionar amanhã, impreterivelmente, você será o responsável por implodir a empresa. Fique certo disso!”. Desliguei puto por ter de responder, segundo as normas da boa convivência, um simples: “Tudo bem”. Faltou-me coragem. Tudo péssimo, como Magda diz; a realista. Na verdade, daí em diante, eu estava sendo levado pelo meu filho, que amofinara de algum desejo traquino. Íamos chutando pedrinhas no chão, sem nos falarmos. Hélder estava visivelmente triste, irrequieto. Será que ele poderia ser acometido pelo meu desgosto? Ao longe, vislumbrávamos um parquinho de um condomínio. Lá estavam o pai e um menino, da mesma idade de Hélder. Quedamos atônitos, olhando a vida em abundância, por alguns segundos, até que o pai zeloso nos notou e arrancou o filho de nossas vistas. Faltava-nos a fortuna da liberdade, da paz. As ruas estavam cada vez mais cheias de degredados da sorte. Eram zumbis à espera de um novo fenecimento. Dessa vez, o mal estava implacável em sua sina e eu não via saída. Mandei uma mensagem para o meu chefe, depois de consultar a poupança. Daria para viver com uma ligeira margem por um ano, pelo menos. Sem contar que poderia fazer uns bicos. Pedi, com educação, que o senhor Aloísio se esquecesse de mim e me desse, bem direitinho, as minhas contas. Passaria a tempestade em relativa calma; um motivo a menos para tombar na terra dos mortos.

 

 

 


 

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