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sábado, 24 de julho de 2021

Carne

  


O homem encontra-se a caminhar por um trilho terroso, imerso na charneca imensa. É verão, o sol vai alto, o calor aperta, mas o homem caminha. Há muito que por desconhecidos caminhos rurais não se aventurava, mas o momento para isso o empurrou. Há tanto que sufocava no pequeno apartamento citadino, temendo sair e ser tragado pelo vírus letal. Muitas vezes se lembrou então dos bons ares dos ermos envolventes da sua terra, algures no interior beirão. Agora, sorve o ar em grandes golfadas, sem medo que um bicho invisível o tome por dentro. Em volta, azinheiras isoladas, erva e saragaços secos, algum mato. A agricultura é já residual na zona, o calor da época esturricou as plantas que se atreveram fora do solo, o deserto vai-se anunciando. Bem por cima, muito alto, um necrófago faz a ronda do seu território, emitindo, a espaços, o grasnado característico, parecendo que diz:

Carne! Carne!

O confinamento doméstico fora suportável, durante quase dois meses. Ele e a mulher tinham até voltado a ter uma espécie de vida familiar, o que já não acontecia havia uns anos. Cada um andara enfronhado no respetivo emprego, a lutar para trazer para casa complementos e suplementos, arrebanhando, sempre que possível, mais e mais horas extraordinárias. Mas o casamento ia bem e recomendava-se.

Durante o isolamento forçado, devoraram juntos quase todas as séries disponíveis, mergulharam na Internet, revezaram-se nas idas ao supermercado. E devoraram-se outra vez, como nos primeiros tempos.

Foi numa saída ao supermercado que o homem recebeu uma mensagem da mulher, que não era para ele. Confessava muita saudade de voltar ao trabalho. E falava em beijos e noutras carnalidades bem mais íntimas.

Lá em cima, o abutre parece comentar os pensamentos do homem:

Carne! Carne!

O homem caminha e recorda a surpresa, a dor, o ressentimento. Recorda o azedume das recriminações, a raiva da afronta, o constrangimento de ter de partilhar o espaço com a desleal companheira.

Quando foi possível desconfinar, quis voltar a experimentar a liberdade dos grandes espaços isolados, como na sua juventude. E idealizou percorrer a pé umas centenas de quilómetros pelo interior, a começar na sua terra. Sozinho, com o básico, liberto de clausuras, aglomerados urbanos e dependências tecnológicas. A expandir os membros e o pensamento, a reconfigurar o seu lugar no mundo, a reencontrar-se.

No momento em que segue com estas deprimentes recordações, tem de cruzar um estreito riacho, quase seco. Aproveita para reencher o cantil, que já vai quase meio. Ou porque as lembranças desestruturam a qualidade dos seus movimentos, ou porque a vida citadina lhe embotou a prática campestre, o homem põe mal o pé esquerdo, que escorrega, se encaixa entre calhaus submersos, se torce e esfola.

O grito que dá é mais pela torção dolorosa, que pela ferida superficial, mas, quando se senta para avaliar os estragos, um fino veio de sangue escorre do tornozelo.

O abutre, de que se tinha esquecido, parece não perder pitada:

Carne! Carne!

O contratempo é grande, mas o homem não quer adiar o seu pequeno sonho. Só percorreu talvez uma dezena de quilómetros; quantos faltarão até à aldeia seguinte? Ata um lenço sobre a ferida, dá uns passos, parece que consegue andar; quando chegar a uma povoação, vai a uma farmácia.

O incómodo no pé e a vulnerabilidade em que se encontra trazem-lhe pensamentos negativos. Lembra-se da angústia que sentiu quando começou a ver morrer pessoas de todas as classes económicas. O número de infetados a disparar todos os dias, por todo o mundo. Filas de caixões a serem enterrados em valas comuns, campos crivados de covas prontas a receber corpos.

Em largos círculos, o abutre parece ter também opinião sobre o assunto:

Carne! Carne!

Toda a tarde o homem caminha. O sofrimento torna-se penoso, mas não há alternativa. Voltar atrás tornou-se inviável e não se avista vivalma a quem pedir ajuda. Passa a noite enroscado sobre uma folhagem, tentando ignorar as formigas que passeiam sobre o seu corpo.

Quando a claridade rubra do sol nascente ilumina o caminho, recomeça a andar. O tornozelo está bastante inchado; perdeu a quentura do andamento do dia anterior. O cantil esgota ao princípio da tarde; o calor é abrasador; o homem espera encontrar outro regato ou avistar uma fonte. Chega a noite sem sinal da povoação desejada. Nem de água.

A manhã seguinte revela um homem quase a arrastar-se, cheio de dores e de sede. Tem febre. Na hora de maior calor, abriga-se na sombra esparsa de uma giesta. Delira. Recomeça a arrastar-se, mas a meio da tarde só percorreu mais umas centenas de metros. Por fim, desfalece.

O necrófago, lá em cima, observa. Alguns círculos depois, deixa-se deslizar sem pressas e pousa no caminho, a uma distância segura. Daí a pouco, nos seus passinhos saltitados e desajeitados, aproxima-se do homem. Com olhar conhecedor, vai avaliando a situação e, finalmente, parece concluir:

Carne!

Depois de umas bicadas de ensaio, arremete aos olhos.

Joaquim Bispo

*

Uma versão concisa deste conto foi publicada na edição número 1700, de 21/07/2021, do jornal Gazeta do Interior.

*

Imagem: Rothko, Sem título (Laranja e amarelo), 1956.

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8 comentários:

Gostei muito do seu conto. Parabéns! Isabel Gouveia

Muito obrigado, Isabel Gouveia!

Parabéns e muito obrigada pela partilha. JM

SIM, TENHO LIDO SEMPRE O QUE ESCREVE E TENHO GOSTADO.

Um conto muito bem escrito, como é costume, com uma densidade crescente e com um final não expectável, mas certeiro e deslumbrante...
carlos corga de barros

Obrigado, Carlos.
O conto nasceu de uma ideia simples, é bastante simples, mas acabou por resultar.
Abraço!

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