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sexta-feira, 25 de junho de 2021

O olhar alheio

 

O que chamou a atenção do visitante do museu foi a descrição de uma evidência:

— … conjunto escultórico, constituído por duas peças em terracota policromada, representando, em tamanho real, uma mulher oferecendo um fruto a um homem, ambos em pé, quase nus.

Aproximou-se do varandim sobranceiro a uma famosa obra de Canto da Maia.

Percebe-se imediatamente que representa o episódio bíblico de Adão e Eva, título pelo qual ficou conhecida — continuava a voz.

De cima, o visitante viu dois homens junto à obra, de costas para si. No silêncio do museu, em dia de semana, a voz era clara e bem audível.

Segundo a Bíblia, se bem te lembras, Adão e Eva estavam no Jardim do Éden, puros e felizes, porque se tinham um ao outro por companhia e com permissão para comer de todos os frutos, exceto dos da Árvore da Ciência do Bem e do Mal; caso contrário morreriam “de morte”. Mas a serpente convenceu a mulher que, se comessem daquela árvore, não só não morreriam como se lhes abririam os olhos e eles seriam como deuses, conhecedores do Bem e do Mal. Então a mulher, reparando que a árvore era boa para comer, colheu do seu fruto, comeu e deu ao homem, que também comeu. Realmente a serpente falara verdade: os olhos abriram-se-lhes e só então souberam que estavam nus.

Havia qualquer coisa de estranho no duo. Enquanto um falava, o outro mantinha um silêncio atento, mas parecia ligar mais à explicação do que à obra.

A obra fixa o momento em que Eva, tendo talvez já provado do fruto, o estende a Adão, que esboça um gesto de recusa delicada. A mulher dirige-se para o homem: o pé esquerdo avança; os joelhos estão ligeiramente fletidos; o rosto é esticado para cima; os olhos estão semicerrados. Há um êxtase interiorizado, um pedido mudo, entendível apenas na postura. Há a oferta expressa dum fruto, na palma da mão esquerda estendida; há a oferta implícita do corpo, que se desnuda — o braço direito estendido sem defesa ao lado do corpo, prestes a largar um escasso véu que a contorna por detrás; a outra ponta presa apenas pela leve pressão do peso do fruto sobre a mão. A ligação entre véu e fruto é óbvia e evidenciada. Ao tirar-se o fruto, o véu cai. O corpo, a nudez, a sexualidade são aqui intimamente associados ao fruto proibido.

A descrição era de excecional qualidade; atentava em pormenores que o visitante nunca notara. Concentrou a atenção.

A representação, de grande sensualidade, plasma o momento mágico em que a mulher se oferece intimamente e sem reservas ao companheiro. Ele está parado, de pés ligeiramente fletidos para dentro, tronco retraído e mãos levantadas em frente do peito, em postura globalmente defensiva. A cabeça está esticada para cima, criando uma ambiguidade entre recusa polida e aceitação desvanecida. O pano que ele sustenta está ainda firmemente enrolado no antebraço direito. Ainda faltam alguns momentos para que o tecido leve, que mitiga a sua nudez, se desenrole e caia. Só um homem como este, preso à rigidez da terracota, consegue ainda resistir a uma oferta tão veemente.

Do varandim, o visitante seguia atentamente a descrição. Também o ouvinte movia o rosto lentamente, um pouco à esquerda, um pouco à direita, apreciando, em silêncio, os pormenores descritos.

O penteado de Eva é objeto de um trabalho minucioso de modelação, apresentando um entrelaçado complexo, que começa no risco ao meio da cabeça e se divide em três tranças de cada lado, onde cada trança agrupa várias madeixas. As tranças cobrem as omoplatas e acompanham a curva do corpo. O penteado de Adão é ainda mais estilizado. É constituído por caracóis hexagonais, paralelos ao couro cabeludo, o que lhe transmite um certo ar de carapinha. No limite anterior, os cabelos não formam caracóis, mas tufos ondeados penteados para trás.

O visitante tentava seguir a explicação demasiado minuciosa, mas alguns detalhes escapavam-lhe.

Canto da Maia gostava do tom avermelhado da terracota, da aura de primitivismo que dá. Usaram-na os Sumérios, os Egípcios, os Gregos pré-clássicos, tantas outras civilizações primitivas. E gostava de véus, sobretudo plissados. Evocam as vestes leves e transparentes das representações egípcias do Império Novo, mas também as gregas. A influência para este arcaísmo erudito de grande beleza vem-lhe do seu mestre espanhol, Júlio António, artista de grande sobriedade formal e contenção emotiva, que lhe transmite a consciência duma cultura comum à bacia mediterrânica.

Já se percebia que a explicação chegava ao fim. O visitante parecia esperar mais.

Como é patente, a representação usa muita expressão não-verbal de sentimentos, para criar uma atmosfera de intimismo, só dos dois. Um espectador, como nós, não cabe no diálogo telepático que está estabelecido; não passa de um estranho. Exterior à sua comunhão, limita-se a circundar o par, para o qual parece não existir mais ninguém no mundo. Gostaste?

Obrigado por me “dares a comer deste fruto”! — agradeceu o ouvinte, em voz suave, sem responder à pergunta. — Acho que se me “abriram os olhos” para tudo o que me apontaste.

O visitante viu-os virarem-se e seguirem para outra sala, o ouvinte apoiado ao outro com a esquerda e uma bengala branca na direita. 

Joaquim Bispo

*

Imagem: Canto da Maya, Adão e Eva, 1929–39.

Museu Nacional de Arte Contemporânea (Museu do Chiado), Lisboa.

* * *


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2 comentários:

Uma excelente descrição de erotismo terracoteano, descrevendo o pecado original a culpa...
Passagem histórica pela antiguidade das civilizações precedentes.
Bom como sempre.
maneldalcains

Obrigado, Aperaltado.
Esta obra também foi denominada Hino do Amor, “Printemps”, ou “Duo d'amour”, mas Adão e Eva vem ao encontro dos nossos mitos das origens.
Abraço!

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