Celeste era mesmo uma brisa da cor do céu; a menininha e o tesouro escondido do papai. Quando eu a encontrava em trajes rústicos, na cabeceira do rio, sentia tanto magnetismo, com o seu singelo sorriso demarcado na expressão dos olhos, que me afoitava para a água, em modos de pescador do nada, e logo vinham me tolhendo os passos profundos de Ignácio – o miserável pai. Eu não intuía a disposição de um velho querer a filha só para si, como se fosse um bibelô, para escorar algum livro empoeirado relegado a uma estante inservível. Ele me afetava com uma zanga de outros séculos, limando qualquer princípio de amistosidade entre nós. Houve um dia em que o encontrei na estrada de piçarra para o sítio Paraíso, ele indo para o mato, trabalhar, arranjar o de-comer, e eu em direção ao meu fado, que não era tão paradisíaco assim. Eu o encarei, como que a cinquenta metros de distância. Ele me viu, mas baixou a cabeça; e, quando se cansou, olhou para o lado, disperso, como se estivesse à procura de uma caça imaginária. Conhecia a sua estratégia, e bolava jeito de o dissuadir. Contudo, ele se mantinha rígido para o meu lado, sem responder aos meus contatos, que variavam de “Bom dia, mestre!” a “Como vossa senhoria está?”. O máximo que correspondia era o sufoco e a afobação. Pronto, ele se danava para algum esconderijo incógnito e, se estivesse com a princesa, arrastava-a pelo braço, como um bezerro caído do ventre da mãe, desengonçado. Aquilo me doía demais. Não chegava à minha compreensão a ausência de atitude da mulher mais linda. Por que ela era tão constrita às ordens, abertamente ilegais, absurdas? Pensei em roubá-la, como se fazia na época do cangaço, mas haveria o risco de me complicar mais, uma vez que Ignácio prestava, ocasionalmente, serviço ao coronel Lacerda, um poderoso que juntava todas as forças de padre, delegado e prefeito. Mandava em tudo ali. E, suponho, era cismado comigo por trabalhar com o velho coronel Araújo, que, com a sua coleção de anos, já não reunia forças para lutar; era, muito diferente dos tempos de sua mocidade, uma pena inerte, prestes a voar nalgum vento traiçoeiro. A mim, raciocinava, não sobrava nenhuma salvação, a não ser os lindos olhos de Celeste. Foi que, no dia de São José, como o sertão se enchia de água e nos animava para uma grande festança, com o povo absorto, prevendo a fartura, recolhi os restinhos de roupa e o trivial para me sustentar por uns dias. Peguei o meu companheiro Mixaria, um burrinho de pouco mais de sete anos, caindo aos pedaços, lustrei-o, como se faz a um carro, e rumei em direção à casa de Celeste; estava disposto a enfrentar o que o destino tivesse me reservado. O aguaceiro era vasto, de fazer tremer o coitado do Mixaria, e amenizei no trato para não desperdiçar as forças e a oportunidade. A cerca de cem metros do local desejado, avistei a minha pequena, que correu para dentro de casa, certamente amedrontada com o que poderia acontecer. O velho não estava lá. Eu sabia de tudo, tintim por tintim; o intento era calculado. Estava, de fato, preparado, tendo regulado a distância do inimigo. Gritei o seu nome, num tom suave, nada agressivo, para ver se despertava o seu encanto. Isso não foi suficiente. Precisei me aventurar mais. Bati à porta, com profundo respeito. “Sou eu, minha princesa, vim lhe buscar!”. “Tá doido, homem, eu não posso sair daqui!”. “Pode, sim! Para o amor, só basta disposição”. Esperei ao pé da porta uma, duas horas, com receio do regresso do tinhoso. Desandei a declarar tudo o que havia no meu coração. Que ela era a mulher da minha vida. Que seríamos muito felizes, longe da imprecação. Que eu estava preparado para o que viesse, menos para um “não”. “Homem de Deus, meu pai é muito brabo; se eu fugir, é capaz de ele me buscar no fim do mundo e me matar”. “Mata não. Primeiro tem de passar por cima de mim. E eu não sou homem de deitar fácil… Avia, Celeste, que essa hora é nossa!”. Como por um milagre, a mulher apareceu na porta, ainda atordoada, com duas ou três mudinhas de roupas. Hesitou; mas, extraordinariamente, me olhava alegre, talvez aliviada. Ajudei-a a subir no Mixaria e, antes de sair, sacudi a terra dos pés, para não azarar os planos. Cortamos as matas e paramos, para nos abastecer, cada um com uma manga, num ponto isolado, perto de Oiticica, como a quinze quilômetros do local da partida. A meta era mesmo aí, pois que poderia me esconder, por uns dias, na casa de tia Severina, irmã de meu pai. Chegamos, no começo da tarde, e fomos recebidos com o maior entusiasmo, como se tia visse o seu irmão. “Mas é a cara cuspida e escarrada do pai! Meu filho, se achegue; bote suas coisinhas aqui!”. Tia Severina morava só, não tinha temor a nada, apenas a Deus. Para se ter uma ideia, andava com uma peixeira no cós e uma espingarda a tiracolo. Era mulher respeitada, atrevida, por isso resolvi me aportar nesse bendito aconchego. Mas, logo no segundo dia, Celeste se amuou, parecia uma cabrita desmamada. Eu me esforçava para convencê-la de que éramos um para o outro, agora. Que eu seria a sua família. Ela disse que tinha dó do pai. Descobri que chorava mais por pavor às consequências. “Celeste, minha vida, não tem nada que perturbe o nosso amor! Se acalme; vai dar certo!”. E a enchia de beijos acauteladores. Com duas semanas, houve histórias de buscas; decerto coronel Lacerda mandara seus capangas para conferir as agitações, porventura, do lugar. Tia Severina, muito pronta, nos arranjou numa casinha de apoio, no meio da mata, e relatou que aí não haveria perigo, pois que o recinto estava demarcado por fantasmas de uma chacina, briga de família, ocorrida no século passado. Celeste se desorientou, mas concordou em ficar. Tia Severina me confiou a sua adaga e, assim, me senti um verdadeiro guerreiro, aprontado para a batalha. Nada sucedeu, afora as suspeitas de lobisomem e bichos desconhecidos, que se debandavam com os meus tiros. Com o estirar dos dias, Celeste acreditou que não estaria num pesadelo e se entregou a mim, integral. Fixamo-nos para lá da Serra Azul, longe dos olhos das raposas. Selamos o nosso compromisso, sob os auspícios da mãe natureza. Raiamos em sintonia com as manhãs. Dançamos com a leveza celeste do tempo próspero, prometido. Nosso Senhor, quando abençoa, não tem cristão que dê jeito. É tudo de mais poderoso. Clara e Francisco são a prova de que valeu a pena; vale a pena amar. Azul celeste é a perfeição para o sonho se tornar realidade.
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