Alice e Maria Helena eram tão afinadas, cúmplices e solidárias que
diziam menstruar juntas. O casal vivia um amor simbiótico, como se
um ser indivisível fosse. Mesmo em corpos diferentes, suas almas
se confundiam num grude só.
Gostavam dos mesmos gostos, tremiam pelos mesmos medos, cantavam
as mesmas músicas, dançavam os mesmos ritmos, rezavam pelos mesmos
santos, liam os mesmos livros, bebiam dos mesmos copos, torciam
pelo mesmo time, comungavam das mesmas opiniões, esbaldavam-se das
mesmas delícias, gozavam o mesmo gozo.
Quando choravam, choravam as duas. Quando riam, riam na mesma hora.
Não divergiam, não discutiam, não discordavam. A harmonia era soberana,
na bonança e na tristeza, no tufão e na calmaria, no tesão e na doença.
Quando sentiam dor de cabeça dividiam as aspirinas. Xingavam pela topada
da outra, espirravam em dueto, tossiam em raro sincronismo.
Até TPM repartiam, com humores alterados, dores somatizadas, fantasmas
compartilhados. Não adotaram bebê por opção. Não entregariam um de seus
úteros aos avanços da ciência por convicção. Egoístas, não se enxergavam
amando mais do que a si próprias.
Até que chegou Violeta, filha de uma prima distante de Maria Helena, viúva
recém falecida, deixando a filha de 18 anos só e sem chão. Alice e Maria Helena
não hesitaram em acolhê-la. E foi Violeta morar com elas. Menina já mulher,
iluminada e especial, cativante e esplendorosa, meio tímida, meio
atirada, meio anjo, meio diabo.
Certa noite, partilhando da mesma insônia de Maria Helena, Alice puxou
o assunto.
- Amor, tenho que te contar uma coisa. É papo brabo.
- Diz logo, mulher...
- Essa menina Violeta, sei não, Maria, essa convivência de repente
está mexendo comigo. Nunca imaginei que isso fosse acontecer com
a gente. Ela me tira do sério, me dá queimação no peito, que desce pelas
pernas.
- Não me diga que está se apaixonando por ela, Alice?
- Como você percebeu?
- Porque também estou, querida. Completamente. É coisa forte e
perturbadora.
Antes que o sol nascesse, Alice e Maria Helena foram ao quarto ao lado.
E fitaram Violeta nua, semi embrulhada nos lençóis, cabelos castanhos
emaranhados sobre o rosto, pernas abertas fazendo um quatro, mão sobre
a relva do sexo exposto, provocando um ligeiro movimento pélvico
ritmado por delicados suspiros. Sinal de que boa coisa ali se sonhava.
Alice e Marie Helena assistiram ao ressonar de Violeta, abraçadas,
pulsantes e desejosas de que aquilo não acabasse nunca.
Mas eis que Violeta acorda de supetão. Senta-se na cama, tira os cabelos
do rosto, e descortina os seios em riste.
A menina ronrona com sua pureza maldosa.
- Alice, Maria Helena… posso dormir com vocês? Estou tendo sonhos
estranhos…
E assim inauguraram as três uma vida de amor puro e intenso.
Passaram a dividir cama, mesa, banho e óbvias gostosuras.
Riam, se divertiam, faziam-se de gato e sapato, dormiam abraçadinhas,
preparavam comidinhas, assistiam a séries, saiam para dançar, passear,
tomar chope no botequim. Tinham planos para o futuro,
casa de campo, viagem à Europa, um filho para as três, talvez,
por que não? Três barrigas, era só escolher.
Mas um dia Violeta não chegou.
Mesa posta para três, um silêncio foi servido na hora do jantar.
Meia noite, noite e meia, madrugada, sol nascendo. Da janela,
quatro olhos desassossegados entre persianas trêmulas e respirações
suspensas, avistam um carro na entrada do edifício. Violeta exuberante,
vestido esvoaçante, cabelos desajeitados, sandálias de salto na mão,
sorriso de quero mais, se despede de um vulto alto e forte,
supostamente bonitão. Um beijo eterno e contundente,
um facada em dois corações.
Naquele instante flagrante, Alice e Maria Helena experimentaram, mais do
que nunca, a perfeição suprema da mais pura sintonia. Quatro orelhas
arderam, quatro pernas bambearam no mesmo chão que se abria.
Duas gargantas, um nó. Um soco no peito que é um só.
Pela primeira vez na vida, conheceram o ciúme. De corroer os estômagos
siameses, suar as mãos entrelaçadas, soluçar em jogral.
Nos corações gêmeos e nos rostos parelhos, a mesma dor da traição.
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