Naquela manhã de
terça-feira, a carteira estava desconfortável. A professora falava sem parar, e
com o burburinho da classe, sua voz alterada soava estridente, quase que
insuportável. Não pensei duas vezes... Apoiei os cotovelos sobre a carteira,
com as mãos espalmadas cobri os ouvidos e, lá de trás, fiquei olhando a lousa.
Os olhos estavam fixos na pedra negra, ou verde-escura, mas nem enxergava.
Pensava no circo... No circo que deveria chegar à vila naquela manhã. Eu queria
tanto estar na rua vendo os carros, os caminhões trazendo os mastros, as tábuas
das arquibancadas, as lonas, os trailers!
E estava ali, naquela
carteira dura, entre quatro paredes e tendo que ouvir aquela voz estridente,
ininterrupta. Se pelo menos ela não precisasse falar tanto!
Ficava até engraçado! Eu, com os ouvidos tapados, os olhos
presos no quadro-negro, e a figura da professora aparecendo intermitentemente
enquanto explicava pela quinta vez o mesmo problema, caminhando de um lado para
o outro.
Era curioso vê-la mexer os lábios sem parar! Que será que
falava naquele momento? Seria fácil saber, bastaria baixar as mãos! Mas não
queria. Queria pensar no circo...
Quando tocasse o sino avisando o final da aula, sairia voando
pelo portão da escola. Será que a duração do período havia mudado? Por que
custava tanto a tocar o sino? Será que o servente havia cochilado? Se demorasse
mais um pouco, ficaria em pé. Não aguentava mais aquela carteira!
Bléim!
Bléim! Bléim! Hora santa! Bendito seja esse servente! Não suportaria mais um
minuto!
A distância da escola até em casa nem vi, nem senti. E foi só
o tempo de jogar a bolsa, tirar o uniforme, pegar um pedaço de pão e... pé no
mundo... A rua principal da vila me aguardava! Era um trote só. Meus pés nem
sentiam os degraus, as guias de sarjeta, os pedregulhos... De repente, era como
se o chão fosse todinho plano.
Que decepção! A rua estava quase deserta, parada demais.
Apenas um ou outro andante, sem pressa. O que será que havia acontecido?!
Atravessei a rua num salto e olhei para o terreno vazio, ao
lado da igreja. Nada de caminhões, nada de circo. A venda do Seu Chico! Era lá
que tinha que perguntar...
− Seu
Chico, cadê os caminhões do circo?
− Que
nada, Crovito! Chegou nada não!
Caramba!
Seu Chico não aprenderia nunca a falar meu nome. Já não era dos mais bonitos e,
ficava pior ainda quando pronunciado errado!
Ajeitei-me
na beira da calçada e só depois de alguns minutos, dei conta do pão amassado
entre os dedos. Com os dentes ia rasgando os nacos e mastigando... O sol estava
de rachar!
Será
que o dono do circo havia mudado de ideia e resolvido ficar na vila vizinha
onde o dinheiro corria mais solto?! Por que demorava tanto? Será que traria
bichos? E o palhaço, seria bom de serviço? Ah! Claro! Eles sempre são bons! E o
trapézio?! Melhor que não tivesse trapézio... Era um momento de sofrimento no
circo. Não gostava da aflição que eu sentia no peito enquanto aqueles doidos
faziam estripulias nas alturas. Mesmo sabendo que havia a rede de proteção,
ficava agoniado, com as mãos suadas, o corpo retesado, e o pescoço doendo sem
parar... Definitivamente, trapézio era aflição, e não distração.
Com os olhos semicerrados, ofuscados pela luminosidade
excessiva do sol, fitava sem parar o começo da rua, lá na baixada perto da
caixa d’água, na entrada da vila.
Minha expectativa se aguçava com qualquer ruído de carro
vindo daquele lado. Chegava mesmo a me levantar! E ficava desapontado quando
percebia ser apenas um caminhão de bois, ou um ônibus. Uma poeira infernal, sem
falar do calor!
Lá pelas quatro da tarde, depois de haver saturado a
paciência do Seu Chico para saber as horas, minha alegria ganhou alento.
Com um barulho avassalador, alto-falante a toda prova,
buzinas e gritarias, a frota do circo despontou na entrada da vila. Num salto,
coloquei-me de pé e saí numa desabalada carreira. Queria ver cada movimento,
dissecar com os olhos cada caminhão. Que alegria!
Quando
me vi diante dos carros, fiquei estarrecido.
O motorista da frente buzinava sem parar e fazia sinais para que eu saísse
da rua. Só então me dei conta de que estava atrapalhando a passagem, e pulei para
o lado do caminhão, rente à calçada. E corri como nunca, acompanhando a
caravana! Eu pulava, gritava, assobiava... Santa Maria! Que alegria eu sentia!
Quando
cheguei à praça, estava ofegante. Sentei-me no banco e fiquei observando os
forasteiros. Parece que a vila inteira se juntara ali. Brotavam pessoas em
todas as esquinas, e iam se aglomerando, batendo palmas, acenando os braços,
erguendo os chapéus. Cada um extravasava sua emoção como queria, da forma mais espontânea.
Quando olhei pro Seu João da Farmácia com os braços erguidos, sapateando como
se dançasse catira, ele ficou meio sem jeito, fitou-me de relance e ajeitou os
óculos sobre o nariz. Tudo tão fantástico! O circo era, sem dúvida nenhuma, a
alegria daquela vila quase sertão.
Grudei os olhos nos badulaques dos caminhões. Os artistas,
todos em roupas coloridas, vivas, ciganas. As mulheres traziam várias voltas de
colares e pulseiras, e na cabeça, cachos e cachos de flores. Tudo transpirava
ilusão. Os ciganos alegres, trazendo nos sorrisos a ilusão do ganho para
subsistência, e nós, mostrando no delírio da receptividade, a avidez de ilusão
para preencher nossa vivência...
Não perdia o menor detalhe! Era um circo pobre, visível na
decrepitude da frota. Mas não importava. O que valia mesmo era a euforia da
chegada e a certeza de que o circo ficaria por ali uma, duas, três semanas... O
tempo de permanência era determinado pela bilheteria. Tomara que todos fossem
ao espetáculo... E todos os dias!
A
caravana contornou a praça e instalou-se no terreno ao lado. Era um rebuliço
só! A multidão curiosa aglomerava-se ao redor dos carros atrapalhando até mesmo
o desembarque das pessoas. Os artistas sorriam, acenavam, jogavam beijos, mas
dava para se perceber que queriam ficar um pouco à vontade, pelo menos o tempo
necessário para montarem o acampamento.
Pouco
a pouco os curiosos foram se afastando. Seu João voltou para a farmácia, Seu Chico foi rapidinho para a venda.
Todos se foram, menos eu. Gostava de ver o trabalho, a organização dos ciganos
quando chegavam. O trabalho era tão dividido e tão sincronizado que em pouco
tempo o acampamento estava montado. As barracas, num passe de mágica, iam
pipocando em volta do terreno. Havia apenas dois trailers. Um era do dono do
circo, e o outro era para guardar as roupas e apetrechos dos artistas. Não
havia bichos, apenas três cachorros que serviam de guarda. Enormes e mal-encarados,
e com grandes bochechas caídas, babões... Ainda bem que ficavam amarrados!
Os
ciganos falavam pouco. De vez em quando se ouvia a voz do chefe dando uma ou
outra ordem. Era tudo muito bem repartido. Cada membro da caravana já sabia da
tarefa que lhe cabia e a executava num piscar de olhos. Não descarregaram as
tralhas da armação do circo. Isso ficaria para o dia seguinte. Seriam
contratados trabalhadores avulsos, gente da vila mesmo, que ajudaria no serviço
braçal. Pena estar escurecendo! Não demoraria muito e teria que voltar para
casa. Pensando bem, até que seria providencial! Estava apertado, precisando de
um banheiro, e meu estômago reclamava sem cessar! Percebi que as ciganas
começavam a luta com as panelas, duas crianças com uns trocados nas mãos,
correram para a venda do Seu Chico. Foram em busca de linguiça e manjuba.
Meti
as mãos nos bolsos, suspirei fundo e virei para casa. Ia assobiando, ora
trotava, ora caminhava. Pensava sem parar na vida dos ciganos. Vida estranha!
Povo sem casa, povo sem pátria... E unidos, extremamente unidos!
Na
vila corria um boato de que os ciganos eram ladrões. Quando estavam por ali,
ninguém ousava deixar nada para fora, à noite. Minha mãe recolhia até os trapos
do varal! Sabia lá até onde aquilo era verdade!
E, quando partiam, o povo ficava preocupado, com medo que a caravana
levasse alguma criança da vila. A verdade verdadeira eu não sabia, mas percebia
certo temor na carinha das outras crianças quando se aproximavam dos
ciganos. Eu não! Medo eu não tinha, mas
um pouco de cisma, não podia negar! Talvez todas aquelas histórias tenham sido
inventadas, levando-se em conta a vida diferente dos ciganos. Era um povo sem
raízes, sem parada, descompromissado, alegre demais diante da crueza da vida.
Nem suas crianças conseguiam estudar direito! Era um “levanta-acampamento” sem
fim!
Em
casa, depois de uma bronca daquelas, hora de traçar uma comidinha gostosa para
forrar o estômago tão castigado com as aventuras do dia. O tempo gasto foi só
aquele: o do banho e o da janta, e de novo na rua. A noite caiu pra valer!
Escuro feito breu! Metido em roupas limpas, peguei o caminho da praça.
Não
via a hora de chegar ao acampamento. Que beleza!... As tendas com os panos
erguidos, lampiões espalhados por todos os lados. Ainda não tinham puxado a
energia do poste da esquina. Uma grande fogueira no meio do terreno e as
pessoas todas em volta. O barulho da música era estimulante. Tocavam guarânias
e cantavam. Quando a música era mais fogosa, as mulheres punham-se de pé,
puxavam seus parceiros e dançavam sem parar, rodopiando soltas, com as saias
vastas e coloridas abrindo-se em toda dimensão. E como eram bonitas as ciganas!
Que povo alegre!
Fiquei
tempo acocorado num canto, observando tudo. Não perdia nada! Nem queria... De
repente, dois pivetes vieram ao meu encontro. Os mesmos que foram à venda do
Seu Chico. Eram mais ou menos do meu tamanho. Foram se chegando e puxaram prosa.
Perguntaram meu nome, se estudava, e queriam saber onde eu morava. Não respondi
de jeito nenhum! Não podia fazer amizade, minha mãe me mataria se eu aparecesse
em casa com dois ciganinhos!
Sentaram-se
no chão e ficaram remexendo, com os dedos, a terra solta.
− Você
quer brincar com a gente?
− Não!
Quero dizer... Amanhã, quem sabe?!
− Não
precisa ficar com medo! Só queremos brincar, nada mais...
− E
quem foi que disse que estou com medo? É que agora não posso, tenho que voltar
pra casa...
Fui me
levantando, fiz um aceno pouco convincente de que estava seguro, e rumei para
casa. Não havia sentido medo, apenas achava que tinha que ficar mais chegado
antes de brincar. Para falar a verdade, nem sabia que cigano brincava! Talvez
eles nem conhecessem minhas brincadeiras!...
Ia
andando e pensando, e cheguei a me irritar só de imaginar que eles pudessem
supor que eu era um medroso, um borra-botas. No dia seguinte eu poderia falar novamente com
eles, e se a impressão tivesse ficado, poderiam perceber que não era nada
daquilo!
Deitado
de costas, eu olhava o teto e pensava longe. Fiquei matutando como que os
ciganos dormiam. Não vi camas no acampamento! Será que dormiam no chão?!
Pensando,
revivendo cada minuto do dia, revendo o rosto dos dois ciganinhos, seus sotaques,
a maneira cantada de falar... Em meio a tudo isso, dormi profundamente.
Caramba!
De novo naquela classe, naquela carteira dura, com aquele burburinho de
moleques, a voz estridente da professora, e eu de novo com os ouvidos tapados.
Que martírio!
À tarde,
quando cheguei ao acampamento, a estrutura do circo estava quase toda montada.
Uns trabalhavam nas estacas de sustentação, outros na montagem das
arquibancadas, e os mais atirados se punham lá em cima, na colocação da lona. O
martelo comia solto. Tudo tinha que ser executado com segurança, nada podia ser
negligenciado.
Fiquei ligado na montagem do palco. Ali se
desenrolariam os dramas, histórias costumeiramente repetidas, mas sempre cheias
de encanto. Gostava de ver “O Ébrio” , e chorava todas as vezes que assistia!
Sabia de cor e salteado tudo o que aconteceria, mas era sempre um toque fundo
na minha emoção. E chorava... Como chorava! Minha mãe também!
A estreia
estava programada para a noite de sexta-feira. A dupla sertaneja que se
apresentaria na grande noite seria “Tonico e Tinoco”. Na vila não se falava em
outra coisa! No sábado, a atração principal seria o “Lambari”, um
artista-palhaço muito querido por aquelas bandas. Eu não perderia um
espetáculo. Nem que fosse pra vender pirulitos para a cigana!
Falando
em pirulitos, gostava de ver a cozinha dos ciganos em dia de espetáculo. Era um
corre-corre danado! Amendoim, pipoca, quebra-queixo, pirulitos de açúcar
queimado e Q-Suco de cereja, se bem que o que eu via mesmo era licor de
groselha sendo misturado! Eles usavam garrafinhas vazias de guaraná, e nelas
colocavam o suco. Conforme iam esvaziando, as mulheres enchiam novamente, e o
menino-vendedor voltava ao circo com novo estoque. Para dizer bem a verdade,
nem lavavam os vasilhames entre uma enchida e outra. No final do espetáculo, os
últimos a tomarem suco ficavam enfastiados, tamanho era o melado, o grude que
cobria as garrafas. Higiene passava longe!... Mas, tudo era festa. O suco ali
no circo era melhor que qualquer guaraná servido nas mesas do almoço de
domingo. Gostoso era o momento! Gostoso era o encanto, a magia do circo!
O que mais me impressionava era a preocupação das mães das
moçoilas da vila, quando chegava um circo. As moças, de miolos moles e de
corações feito gelatina, se empolgavam com os artistas e, deslumbradas, eram
vítimas de promessas vãs feitas em noites de luar. Minha prima mesmo deu a
maior bandeira quando o circo anterior foi embora. Minha tia, já experiente,
percebeu alguma coisa no ar, e ficou de olho. Qual não foi a surpresa quando,
dentro do malão no quarto, viu a trouxa de roupa feitinha. Estava tudo
arranjado para a fuga, na madrugada seguinte, com a caravana.
Foi um tendepá, o tempo fechou, o circo partiu e minha prima
ficou debulhada em lágrimas. Se ficasse sozinha, chorava, se alguém lhe
falasse, chorava. O negócio dela era chorar! Chorou durante uma semana,
depois... passou. Àquela altura, com novo circo na vila, sua cabecinha já
deveria estar a mil, pensando nos novos artistas. Planos maquiavélicos estariam
lhe dando nó nos pensamentos, com certeza!
Engraçado como tudo se repetia. Uma, duas, três... Inúmeras
vezes e não perdia o encanto! A cada chegada de circo era uma festa tão
esperada, tão curtida que parecia ser a primeira. E eu amava aqueles momentos!
Tudo estava uma beleza! A lona estendida no chão apresentava rasgos
enormes, buracos por onde passariam chuva e sol suficientes para amolar várias
pessoas. Mas lá no alto, esticada, aberta sobre as estacas, aqueles furos
pareciam insignificantes, quase que imperceptíveis. Chegava mesmo a ficar
bonita! Imponente! Era toda listrada de vermelho e amarelo. Alegre, alegre como
aquela gente. Alegre como a vila estava. Ou era eu?!
O tablado de madeira, bem alto do chão, era grande. Seria o
palco das grandes emoções. Ficava sempre imaginando o vexame que seria se no
meio do ato em noite de espetáculo, fossem acesas as luzes do picadeiro! Em
meio ao drama que se desenrolava lá em cima, na plateia era um choro só, se bem
que disfarçado, é claro! Às vezes, uma ou outra dama mais descuidada, ou mais
incontida, deixava escapar um soluço, ou mesmo uma fungada, daquelas que saem
da garganta quando tentamos engolir o choro. Aí era um desconforto... O marido
lhe chamava à atenção, os filhos a recriminavam, e os mais indiscretos ou insensíveis
soltavam gargalhadas.
Meu Deus! Como a mulherada chorava!... Não era só a
mulherada, eu também chorava. Por isso ficava sempre perto da minha mãe. Ela
não se importava com o meu choro. Também, se olhasse para ela sabia com certeza
o que iria ver. A cara vermelha, a mão cobrindo a boca como que para sufocar o
soluço, e os olhos encharcados. Eu era discreto. Nem olhava... Meu pai cruzava
e descruzava as pernas. Balançava a cabeça de um lado para o outro como se
achasse a situação patética. E repetia mil vezes:
− Não sei pra que chorar? É tudo de mentira!
Insensível! Não importava que fosse de mentira. O que
importava é que retratava o verdadeiro, o real. Ele nunca entenderia! Ou entenderia?!
Se eu fosse adulto estaria trabalhando ali, na armação do circo.
Mas, moleque ainda, sobrava-me olhar e fazer de tudo para evitar ser
escorraçado dali. Prestava uma atenção danada no movimento dos homens que
estavam por perto. Sabia que se os atrapalhasse seria convidado a me retirar.
Nem pensar! Arrumava sempre um canto para ficar onde não incomodasse ninguém.
Só queria ver, e bem de pertinho!
À
noite, tudo se repetia. A fogueira acesa num canto, a festa, a dança, e os
ciganinhos puxando prosa. Eram inofensivos. Não passavam de crianças como
tantas outras. Crianças com os mesmos instintos, com as mesmas brincadeiras,
com as mesmas vontades. A única diferença ficava por conta da vida sem parada,
sem raízes, da vida sem história, ou com muitas histórias, não sabia! Nem
amigos fixos conseguiam ter! As amizades eram sempre superficiais, efêmeras,
não havia tempo para que amadurecessem, para que fosse criada a cumplicidade de
espírito, de pensamento, de experiências.
Noite de sexta-feira. O adro da igreja estava apinhado. Gente
saindo pelo ladrão! As moçoilas, alvoroçadas, corriam de um lado para o outro,
olhando aqui e ali, procurando os olhos verdes, os olhos castanhos, o príncipe
encantado. Parecia até que o povo todo do campo, em redor da vila, estava ali.
O circo já havia programado duas sessões. A primeira certamente lotaria com o
povo da roça! Nada mais justo! Afinal, teriam de voltar para casa, e a casa não
ficava nada perto!
Eu estava tão afoito, tão contagiado com todo aquele
burburinho que sentia até formigamento no corpo. Parecia até que meu sangue
voava nas veias! Meu ingresso estava no bolso, e não precisava me preocupar em
entrar logo. A cadeira guardada ficava por conta da minha mãe. Ela sabia que eu
tinha que ficar num lugar privilegiado, e também sabia que eu seria o último a
entrar...
Precisava viver cada momento, cada minuto daquele vaivém da
praça. E eram tantas cenas engraçadas! As discussões na fila da bilheteria
quando algum intruso, se julgando muito esperto, tentava furá-la, os palavrões
cheios de insultos daqueles que tinham os pés pisados por outros mais
descuidados, a mãe gritando alucinadamente com alguma criança que,
distraidamente, se dispersava na multidão. Era um desassossego de pernas, de
braços, de bocas. Era como se todos tivessem combinado de falar ao mesmo tempo.
E como eu curtia tudo aquilo!
Antes do início do espetáculo, eles soavam uma sirene por
três vezes, com intervalos de dez minutos. Acabava de soar o segundo aviso e eu
achei que deveria me encaminhar para a entrada, pois poderia ter fila!
Não queria perder nem a apresentação dos artistas feita no
começo e no final do espetáculo. Era tudo tão colorido, tão brilhante, e a
música que a banda entoava era eletrizante!
Corri para a fila. Ainda bem que não estava extensa. Não demorou nada e eu já estava sob a lona,
afundando os sapatos na camada de pó de serra espalhada pelo chão, e sentindo a
claridade ofuscante dos holofotes do picadeiro. Que lotação! Que burburinho!
Era um empurra-empurra, um esfrega-esfrega, desculpa pra lá, desculpa pra cá,
tantas as vezes que os cotovelos resvalavam ora na cabeça de um , ora nas
costas de outro...
Passei os olhos na fileira da frente, a primeira, diante do
picadeiro. Em segundos descobri minha mãe que sinalizava indiscretamente com os
braços, feito torre de comando. Difícil foi chegar até ela! Era um
deus-nos-acuda passar por entre as cadeiras lotadas. Insultos não faltavam!
Acomodado, os olhos faiscavam olhando as cortinas por onde
sairiam os artistas. A banda, já em forma, aguardava o terceiro sinal para
puxar a música. E meu coração, aos solavancos, contava os minutos que
antecediam aquele momento. Foi num zás-trás! A sirene soou. Comprida,
chamativa. Em seguida, a banda detonou. A marcha alegre contagiava as pessoas,
e por incrível que possa parecer, acalmava as crianças. Elas se acomodavam,
procuravam seus lugares, os pequeninos corriam para o colo da mãe, ou do pai, e
ficavam em clima de expectativa. Os olhos brilhavam contentes, ansiosos.
Entrou o apresentador, dono do circo. Em traje de gala,
brilho para todo lado, vinha com passos decididos, sorridente, satisfeito com a
imensa plateia. Tentava passar uma boa imagem do seu espetáculo. Agradecia com
seu sotaque pitoresco o comparecimento de todos, elogiava o povo da vila e
apresentava seu elenco. Os artistas iam entrando na sequência anunciada, ao som
da marchinha alegre, as roupas brilhando feito joias, e enchendo nossos olhos
de encantamento. Sorridentes, extremamente sorridentes.
Ah! Os palhaços... Quantos palhaços! Graciosos, engraçados,
faceiros. Os dois palhaços anõezinhos eram lindos! Peraltas até onde mais não
podiam!
E tudo foi um sonho...
As brincadeiras, as palhaçadas, as mágicas, o malabarismo, e a dupla caipira,
esta sim encantou o meu pai. Ele ficou maravilhado, não conseguia fechar a boca
diante de tanto fascínio! Foram cantadas aquelas mesmas músicas que ouvíamos no
rádio, quase que diariamente. Do trapézio eu não poderia falar, porque a bem da
verdade, nem olhei. Sofrer pra quê? Aproveitei o tempo e fiquei observando as
pessoas. Sinceramente, estava até patético! Todos com os pescoços estirados,
queixos para cima, corpos retesados, e o silêncio apenas era cortado pelo rufar
dos tambores e pelo suspiro coletivo da plateia. Era um “uuuuuiiiiiii” fundo,
comprido. Pelos semblantes apavorados podia imaginar as estripulias que aqueles
malucos faziam lá em cima. Ainda bem que foi rápido. Trapézio era de lascar!
Para fechar a noite, a peça de teatro. Linda, e como sempre,
extremamente triste. A cena se repetia. Luzes apagadas na plateia, o choro
disfarçado, o assoar de nariz, a tosse dissimuladora...
E a sessão terminava... As luzes acesas, as palmas, os
artistas voltando ao picadeiro, o aceno de despedida, a voz do apresentador
agradecendo a presença de todos e propagando o espetáculo do dia seguinte, a
banda dando os últimos acordes. Que pena! Ficaria a noite toda ali, se preciso
fosse!
Na saída, os pequeninos já não caminhavam. Dormiam frouxos
nos ombros dos pais amarrotados, das mães de olhos inchados. O comentário
favorável era geral. Todos haviam gostado do que viram, elogios pipocavam em
todas as conversas. O povo estava satisfeito!
Nossa Senhora! Como estava a cara da Dona Isidora de tanto
chorar! Parecia que tinha lutado boxe! Coitado do marido! Estava até
constrangido!
Em casa, eu nem conseguia dormir, tamanha a excitação vivida
naquele dia. Diante dos meus olhos as cenas se refaziam. Os palhaços... Ah! Os
palhaços...
Os
dias voaram, os espetáculos voaram. Uma, duas, três semanas... Até que chegou o
triste dia. A partida da caravana. No mesmo ritmo acelerado da montagem
aconteceu o desmanche do circo. Em horas de trabalho, tudo estava no chão, ou
melhor, nos caminhões.
E a
caravana partiu. Silenciosa, sem banda, sem buzinas, sem acenos, sem alvoroço.
Os únicos que me saudaram na partida foram os ciganinhos. Pareciam tristes!
Minha cabeça era tão dura que só me lembrava do nome de um deles: Pablo.
Também, o outro tinha um nome tão esquisito, tão complicado! Tão complicado
como estava meu ânimo naquele momento. Vendo a caravana se perder em meio ao pó
da estrada, sentia o peito apertado, um desânimo, uma desilusão...
Olhei
o terreno vazio, havia muito lixo espalhado. Quanta diferença havia entre
aquele silêncio e o vozerio dos dias passados! Só me restava pegar o rumo de
casa... Sem pressa, mãos metidas nos bolsos, chutando um pedregulho aqui outro
ali, cabisbaixo, descorçoado, num desalento só...
Não
demorou muito e a notícia se espalhou. O rebuliço explodiu na vila, era um
fala-fala danado! Eu havia percebido silêncio demais na partida. Foi muito às
pressas, como se alguma coisa impelisse
a caravana a deixar rapidamente a vila.
Minha
mãe, percebendo o alvoroço das vizinhas, as vozes alteradas, correu até a
porta, espantada. Para acalmá-la, fui ao seu encontro e, percebendo seus olhos
aflitos e inquisitivos, falei calmamente:
− Não
foi nada, mãe... A filha da Dona Idalva partiu com a caravana...
Regina
Ruth Rincon Caires
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