Pela vibração das
tábuas dispostas no piso metálico, sob os pés, percebia-se que o vapor começava
a movimentar-se. As roldanas giravam, e hélices iam cortando as águas salgadas.
Seriam dias e dias de giros. O mar inteiro seria cortado. O apito grave e
moroso traduzia a tristeza da partida. No convés, centenas de passageiros com
olhares perdidos e saudosos, engoliam o medo do desconhecido. A névoa da
madrugada deixava o cais hispânico cada vez mais distante, cobria o minúsculo
contorno da pátria deixada. Não era vontade. A iminência da guerra, a fome e a
peste não deixaram escolha. Desolados, muitos partiram...
No dia anterior, passamos
a tarde toda em imensas filas, arrastando o velho baú e outras matulas com
pertences e provisões. Apresentação dos passes, contagem dos integrantes de
cada família, avaliação médica que exigia colocar a língua para fora e puxar o
canto dos olhos. Ficamos acomodados no segundo porão, quatro lances de escada
abaixo do convés. Cada passageiro, ao chegar ao piso, recebia uma saca com
palhas secas que seria usada como colchão, menos as crianças. Estas deveriam
aninhar-se com os pais, era preciso economizar espaço. Eu, apesar dos meus onze anos, como era
espigado, recebi uma saca. Teria que dividi-la com Enrico, o irmão menor. A
pequena Estelita ficaria com a mãe.
Passada a atribulação
da partida, os passageiros encaminhavam-se para os refúgios. De cabeça baixa,
cada qual carregava a sua insegurança. O primeiro porão ainda trazia algum
conforto. Havia múltiplos beliches de lona, privadas separadas para homens e
mulheres. Porão reservado para os mais remediados, com cobrança de ágio. Impossível
para nós.
No segundo porão, nosso
refúgio, os baús serviam de biombos que separavam as famílias. Centenas e
centenas deles espalhados pelo ambiente, formavam ilhas de pessoas. Amontoados
de gentes e trastes. De resto, seria aturar aquele balançar interminável, o
rebuliço no estômago, o vômito incontrolável.
Em nenhum momento as
vozes silenciavam por completo. Havia sempre um resmungo de mal-estar, uma
ralha, um choro mais estridente de criança em desconforto, uma fala doce para
apaziguar o medo. Sem contar o rame-rame sonoro vindo da casa de máquinas. Porém
havia escuridão no céu, cansaço nos corpos, então nem o murmurinho atrapalhava
o sono profundo de muitos.
Confesso que dormi
pouco naquela noite. E em muitas outras. Enrico mostrava um desassossego de
pernas que incomodava. Não só pelas pancadas, mas pelo ruído das palhas secas. Ele
estava sofrendo mais que nós todos. Menino arredio, amofinado. Em casa, vivia
pelos cantos.
O sol nos pegou
acordados. Se bem que a claridade do porão era ínfima. O ar e a luminosidade
passavam apenas pelas duas escotilhas existentes entre os dois porões e que, na
maioria dos dias, permaneciam abertas. O tênue facho de luz deixava à mostra o
aspecto lamentoso daquela realidade. Semblantes contrariados.
De nós, só o pai foi ao
convés para o banho de sol. Ficamos ali, engolindo o pão seco trazido na
bagagem. A mãe, de pé, tentava esticar as pernas e rodear o velho baú. Havia
pouca coisa a ser feita. Ou muita...
O único banheiro era
insuficiente para atender a todos, restava recorrer aos urinóis. As crianças não se acanhavam, mas, para os
mais velhos, o uso ficava restrito à escuridão da noite. E de manhã, para esvaziá-los, era uma
conturbação de mulheres na porta do banheiro. O cheiro ficava insuportável. Com
o balanço das águas e a fetidez do ambiente, as náuseas multiplicavam-se. E a
travessia ainda estava no início.
Enrico não se
alimentava. Aceitou um pouco de água, que não parou no estômago. Não estava
bem. Passou o dia aninhado no colchão. Calado, olhos turvos. Havia, no
semblante, mais que mal-estar do corpo. Travava luta de pensamentos.
Preocupava-me.
E, a cada dia, a viagem
tornava-se assustadoramente desumana. Passada a primeira semana, as provisões
escassearam. Não tínhamos quase nada. O pão, mesmo embolorado, seria suficiente
apenas para mais dois dias. A sopa servida a todos, além de insípida, era desprovida
de nutrientes e de higiene.
Ficava evidente o
abatimento físico dos passageiros. Os homens já não se entusiasmavam pelo jogo
de cartas, fumavam desesperadamente, e a bebida tornou-se ainda mais companheira.
Havia muitos passageiros acamados. Pouco se comentava sobre isso, era quase um
tabu tocar no assunto. Quando a tosse era ouvida, as famílias em redor se
entreolhavam, porém nada, absolutamente nada era dito. Tornou-se um segredo
respeitoso, que na verdade não era segredo. Era medo, camuflado pavor.
Enrico definhava a
olhos vistos. Calado, insone, inapetente. Ouvia tudo, observava. Notava os
menores movimentos. E temia. Na escuridão da noite, bem próximo a ele, eu
percebia que quando qualquer passageiro era acometido por crises de tosse, ele
erguia a cabeça e olhava em direção do ruído. E as crises foram se tornando tão
frequentes que nem mesmo as vozes das mulheres entoando os cânticos religiosos
encobriam o som assustador.
A superlotação era
tamanha que o ar foi se tornando irrespirável. Os corpos sujos, sem qualquer zelo,
as roupas impregnadas com o suor de semanas, os cabelos ensebados, o piso
lambuzado de vômito, urina, restos de comida e bebida, o banheiro e os urinóis
sujos, tudo exalava um azedume que embaralhava o juízo.
Ainda era noite, e, de
repente, Enrico começou a puxar minha perna. Foram vários cutucões até que eu
percebesse que ele queria me mostrar algo. Ainda meio sonolento, pude ver pessoas
da tripulação descendo as escadas, trazendo maca de lona. Em meio a choros abafados, rezas sussurradas,
o passageiro era colocado na maca e carregado escada acima. E isso aconteceu na
outra noite, e na outra, e na outra.
Logo a notícia correu.
A febre estava no navio. O caso nunca era contado pela família do doente. Era
revelado pela família que estava acomodada ao lado, horrorizada com a
possibilidade do contágio iminente. E, desta maneira, o pavor passou a dominar os
dias e as noites.
O pai disse que os
primeiros casos apareceram no porão de cima, que até mesmo o médico da
tripulação fora contaminado. E a partir daí, o convés passou a ficar ainda mais
apinhado durante todo o dia. Os homens, aterrorizados, quase não voltavam para
os porões. Enquanto houvesse sol, ficariam ao ar livre. O risco seria menor...
Ou não.
E o médico morreu. Uma
solenidade rápida foi feita e ele foi lançado ao mar. Quando o pai nos contou
sobre isso, Enrico encolheu-se na cama, abraçou as pernas e pôs-se a tremer.
Era um medo tão desmesurado que afligia. Frágil, indefeso. Deitei-me ao lado
dele e o abracei com força. Fiquei ali até que o tremor passasse. E ele dormiu.
Então compreendemos que
as pessoas que eram retiradas com as macas não eram tratadas, não havia médico.
Eram lançadas ao mar, vivas. Muitas delas nem sabiam que estavam sendo levadas,
estavam mal, delirantes. As famílias sabiam que
não estavam mortas, e também sabiam que elas não poderiam continuar ali.
Sem escolha.
As noites passaram a
ser ainda mais tristes, como se fosse possível. Mesmo com a explicação do pai
de que não havia chance de cura, de que a febre era fatal, Enrico não conseguia
assimilar. E passava a noite contando os passageiros carregados nas macas. E
tremia. E, mansinho, chorava.
A mãe andava tão
entristecida que já não catava os nossos piolhos. A cabeça coçava, ardia. As
picadas faziam feridas. Ela mostrava olhos fundos, havia perdido carnes, a pele
estava pálida, azulada. O rosto murcho, desidratado. Silente. Não se ouvia mais
o seu canto de anjo, as rezas ficaram mudas. Percebia-se apenas o movimento dos
dedos nas contas do rosário.
E havia pessoas que gritavam
ao serem transportadas nas macas. Não tinham força para lutar, só sobrara o
grito. Só isso. Sabiam do destino que as esperava. E quando isso acontecia,
todos choravam. Enrico se descontrolava. Eu o abraçava com força.
Acomodado ao nosso
lado, havia um casal. Apenas os dois. O homem aparentava mais idade, a mulher
era bem jovem. Ela vomitava desde que o vapor deixou o cais. Estava pele e
osso. Andava pouco, tomava a sopa mostrando a repugnância que lhe causava, mas
tomava. O homem estava sempre a buscar
uma caneca com água para que ela bebesse. Havia muito carinho entre os dois.
Demorei a perceber que ela estava prestes a ter um filho. O excesso de roupas
não permitia visualizar a silhueta. Só fui saber quando ela começou a chorar, a
gemer e minha mãe correu até ela para acudir.
Foi levada para um
canto e várias mulheres se juntaram. Horas de agonia até que a criança
nascesse. Um menino. Miúdo, de chorinho fraco. A mãe, quando voltou, falou que
a criança não vingaria, que respirava com muita dificuldade. Veio antes do
tempo.
A mulher voltou para
perto de nós quase desfalecida. Ajeitou-se sobre o colchão de palha, mas perdia
muito sangue. Colocou a criança ao lado e ambas dormiram. Já era madrugada
quando começaram os gemidos. Na penumbra, o marido entendeu que ela estava
muito mal. Assustou-se quando não encontrou a criança. Perguntou sobre o filho,
mas a mulher fez sinal para que ele ficasse quieto, não queria que o acordasse.
Ela dizia que a criança estava bem, que estava descansando. O homem achou muito
estranho e começou a rodear os pertences em busca da criança. Quando abriu o
baú, caiu no choro. O filho estava lá dentro, gelado, morto. E na hora da
entrega do corpinho para a tripulação, todos choraram. A mulher variou o dia
todo. Gemia, sangrava, delirava. Na noite seguinte, foi levada. Não sobreviveu,
o sangramento não cessou. E o homem
ficou só. Quieto, sem lágrimas. E Enrico se contorcia de pavor, não perdia uma
cena, uma palavra.
O vapor estava bem
próximo do destino. A febre consumira quase metade da tripulação e passageiros.
O espaço dentro dos porões era bem maior, e a sujeira também. De nós, apenas
Estelita apresentava quadro de saúde preocupante. Recusava-se a comer,
queixava-se de dor na garganta, vomitava com mais frequência. A mãe vivia
encostando as costas da mão na testa da menina, medo da febre. E ela veio.
Intensa. Em dois dias, Estelita foi levada pela tripulação. Eu não soube se
estava viva ou morta. A mãe nunca falou. Só chorou. Chorou por dias... Chorou a
vida inteira.
Em alto mar, outro
navio nos interceptou. Teríamos que guardar quarentena a quilômetros da costa.
Alimentos foram trazidos para reabastecer a cozinha, banhos foram oferecidos
com jatos d’água. E os médicos seriam disponibilizados uma semana depois,
quando então seríamos colocados em outro navio.
E nesta última semana a
bordo do antigo navio, ocorreram as últimas mortes. Muitas. Os mais debilitados
não resistiram, e os demais, como nós, empenharam-se em engolir a intragável
sopa com mais tolerância. Era a única salvação.
Depois da
transferência, foram mais doze dias para atracarmos no porto de Santos.
Destroçados, descarnados, de almas amputadas, mas vivos.
***
Minhas pernas cansadas
fizeram este caminho centenas de vezes. Agora, andam trôpegas. Talvez as
visitas cessem, não por minha vontade, mas por exigência da vida. Ou da morte. Ainda
preciso abraçá-lo. Isso o acalma. Sempre foi assim.
Quando me vê, Enrico
abre um sorriso. Já não caminha. Apesar de ser mais novo que eu, a vida foi
mais severa com ele. Fica à minha espera no banco do minúsculo jardim da casa
de custódia. Aninha-se no meu abraço forte. Aquece-se do meu amor. E é sempre a
mesma conversa.
- O pai não veio com
você? A mãe não veio?
- Não, Enrico. Eles não
vieram.
- Eu sei. Eles não
entendem que eu não matei as pessoas. Eu não matei aqueles doentes, eles iam
morrer de qualquer jeito. Não havia cura, a doença era fatal. E aquelas
crianças, eu não matei! Elas só estavam descansando... Eu juro! Por favor,
Manolito, converse com eles, eles vão acreditar em você!
- Acalme-se, Enrico, eu
vou falar com eles.
Como explicar a ele que
a mãe morreu logo que ele foi preso, e que o pai, alucinado, partiu logo em
seguida. Será que compreenderia? Enrico trabalhava como auxiliar de limpeza do
hospital. Serviço pesado. Cuidava desde o recolhimento de resíduos das
lixeiras, dos descartes cirúrgicos, do ensacamento e acompanhava o transporte para
as fornalhas de incineração. As mortes ocorreram na ala da enfermaria, sempre
no turno da noite. Nunca se soube quantos morreram. Todos indigentes. O último
crime foi evitado em razão do grito do paciente, ouvido pelo operador da
caldeira, quando ia ser arremessado ao fogo. E, então, Enrico foi preso.
***
E, um dia, quando
cheguei para a visita, o banco estava vazio. Enrico havia sido levado pela tripulação.
Regina Ruth Rincon Caires
2 comentários:
Amarga Travessia
Um Conto com letra maiúscula com um tema marcadamente de
Terror Psicológico.
A frase de Manolito impregna na alma: “Destroçados, descarnados, de almas amputadas, mas vivos.”, mostra exatamente como todos terminam essa travessia aterrorizante. Lendo sobre as mortes me vem cenas de um filme "Amistad", de Steven Spielberg, sobre um barco, La Amistad, que foi buscar africanos em seus países de origem e acaba sendo tomado por eles. Antes do filme tomar a proporção que toma e mudar o desfecho, a película apresenta como é feito o descarte dos seres adoentados que são lançados ao mar ainda vivos.
O conto é muito bem construído, praticamente um estudo sobre a loucura. O surgimento e evolução (pari passu) da loucura. Li e reli o texto e tomei foco no narrador que traça o caminho pelo qual as personagens mostram seu potencial psicológico. Amarga Travessia apresenta a criança abatida que mais tarde enlouquece, ou melhor, sofre “uma distorção de pensamento” permanente e perde o senso de realidade.Em relação há alguns textos sobre loucura que leio em Desafios Literários, Amarga Travessia o ato de aterrorizar é melhor construído, porque a narrativa sugere o enlouquecer em outras personagens: a mãe que “guarda” o filho na mala para protegê-lo; a mãe do narrador mostra traços depressivos: “(…) olhos fundos, havia perdido carnes, a pele estava pálida, azulada. O rosto murcho, desidratado. Silente. Não se ouvia mais o seu canto de anjo, as rezas ficaram mudas. Percebia-se apenas o movimento dos dedos nas contas do rosário.”, os homens perderam o gosto pelo jogo e até as crianças perderam o ânimo.
O cenário é bem definido: pequeno pela quantidade de passageiros; com mistura de cheiros; com pouca ou nenhuma privacidade: “Os baús serviam de biombos que separavam as famílias. (…). Amontoados de gentes e trastes.”; mal estar constante pelo desconforto da viagem:” De resto, seria aturar aquele balançar interminável, o rebuliço no estômago, o vômito incontrolável.”
Enrico, a personagem que até aí parece só mais um coadjuvante adoentado, é quem percebe o que acontece com quem adoece e morre ou está para morrer: “compreendemos que as pessoas que eram retiradas com as macas não eram tratadas, não havia médico. Eram lançadas ao mar, vivas.” E Enrico é quem se aflige mais, principalmente por sua fraqueza, quando o transportado, sem forças para se defender, gritava desesperado, sabendo de seu destino.
Milagrosamente, Enrico sobrevive a isso tudo, saem ilesos pais e filhos, a Amarga Travessia vira uma recordação para quase todos. Para Enrico não, a Travessia impregnou-se em sua mente de forma doentia e ficou ali, até que todos descobrissem, tarde demais, que ele não tinha superado.
Adulto, trabalhando em um hospital, ele reproduz o que viu no navio, já que não há mar, entrega à caldeira os doentes até que um, que não tem força para se defender, manifesta seu desejo de permanecer lutando pela vida com gritos e então Enrico é descoberto.
A metáfora final é sublime: “E um dia, quando cheguei para a visita, o banco estava vazio. Enrico havia sido levado pela tripulação.”
No tocante a construção do Conto, as Personagens estão bem definidas. A mudança de tempo é perfeita. Os espaços físicos e psicológicos são bem delineados.
A Ação principal é bem elaborada. O narrador é também personagem, por isso a narrativa é marcadamente interna.
A Situação inicial é apresentada como a Travessia em si. O Conflito é desencadeado no futuro, pelo problema de descarte ao mar dos moribundos.
A tensão está presente em diversos momentos da narrativa justamente pelo desenvolvimento do pavor criado pelos problemas da travessia, que acontece em um tempo corrente e depois, mesmo na quarentena, o medo continua. O clímax – descoberta da natureza enlouquecida de Enrico e o desfecho, com sua morte, são perfeitos.
Um primor de conto.
Eita, que lindeza! Obrigada, menina! <3
Postar um comentário