Somos Thales e Tadeu. Digo “somos” porque viemos gêmeos univitelinos
e assim percorremos os primeiros anos com as mesmas feições, o mesmo andar,
as mesmas roupinhas, o mesmo terninho, as mesmas meias três quartos,
as mesmas gravatinhas borboleta. O mesmos topetes de Gumex.
Ainda crianças, levamos a mesma porrada. Perdemos nossa mãe,
nosso pai endoidou e deu um tiro na boca, e nos dividimos na vida.
Eu fui pra Barbacena para casa de uns tios, onde mais crescidinho entrei
para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar, enquanto meu irmão ensaiava
no Rio, morando com primos distantes, os primeiros estudos de Medicina.
Nunca mais nos vimos. Pouco nos sabíamos.
Até que apareci para assistir à final Brasil e Uruguai da Copa de 50 no Maracanã.
Fiz questão de convidar meu irmão para ir comigo. E fomos. Depois de tantas vidas
dispersas, não nos reconhecíamos mais como gemelares crianças que fomos,
sem identificação alguma que houvesse perdurado. Ele ainda usava Gumex. Eu não.
Quando Ghiggia fez o segundo gol do Uruguai, colocando a alma brasileira na lona,
houve um silêncio de doer os ouvidos como se tivessem enfiado um cotonete de arame.
Soluços explodiram ao nosso redor. Acabou o jogo, o povo foi saindo devagarinho.
Lembrou o cortejo da mamãe.
Foi neste momento que meu irmão, impassível, tirou um limão do bolso, descascou
com os dentes e começou a chupar. Chupou, chupou, chupou, até chegarmos sem trocar
palavra na casa do primo distante onde ele morava, perto do Maracanã.
Um trauma. Mas não tão aflitivo quanto à curiosidade que começou a me perseguir
e nunca tive coragem de perguntar: por que chupar limão?
Eu virei piloto de avião, larguei a caserna e fui para os Estados Unidos
treinar em Constellations – voltei direto para a cabine de um deles da Panair.
Meu irmão formou-se em Médico Legista. Mesmo à distância, sabia por fontes
confiáveis que ao chegar em casa depois de uma jornada dissecando defuntos,
danava a chupar limão.
Enquanto eu flanava mundo afora, conferindo de fato o mapa mundi da parede
da escola, não tinha tempo para conviver com ele. Na verdade, não tinha
tempo para ele. Mas sabia de seu casamento, do casal de filhos e do casarão
na Tijuca, que comprou de tanto escarafunchar os mortos com extrema habilidade.
Virou diretor do IML. Mas nunca deixou de chupar limão.
Quando a filha deu desgosto, se enrabichando com um sujeito de cabelo crespo,
meu irmão passou a chupar limão no café da manhã. Quando as brigas com a mulher
atingiam os píncaros da insanidade, trancava-se no banheiro e chupava limão.
Quem me contava essas coisas era uma amante que tinha no Rio, uma psicóloga
bem mais nova que eu, a tal fonte confiável, por acaso do destino, vizinha
do casarão do meu irmão. E como vizinha, amiga da família dele, sem que nunca
revelasse a nossa clandestinidade. Nunca falou de mim para meu irmão, mas
sobre ele, dizia que vivia chupando limão.
Minha formação militar, objetiva, técnica, metódica e cartesiana não me deu
margens a pensamentos profundos. Mas minha amante defendia que meu irmão
compensava as agruras da vida chupando limão. A acidez cítrica extrema lhe
provocava um alívio, por encontrar entre a língua e o céu da boca algo mais
ácido do que os piores momentos que a vida oferecia. E assim ia vivendo.
Talvez fosse isso, não sei. Sou bom em aterrissagens, decolagens e não em
interpretações, subjetividades e diagnósticos de psicólogos.
Numa manhã cheguei de Paris e, como de costume, fui para o Hotel Novo Mundo
no Flamengo encontrar minha amante. Ela chegou muito atrasada, esbaforida e
me veio como uma notícia: “seu irmão acabou de morrer de infarto, debruçado
em cima de um cadáver no Instituto Médico Legal”. Horrível.
Imaginei um corpo sobre o outro.
No velório não consegui chorar. Olhei o rosto céreo do meu irmão, vi minha
cara com algodão no nariz. Mas nem a lembrança de nós meninos de gravatinha
e meia três quartos mexeu com minhas entranhas. Cumprindo protocolo, abracei
os filhos e consolei a viúva, agradecendo seu último esmero em pentear o cabelo
do marido morto com Gumex. Nem uma lágrima me veio. Nem nó na garganta.
Nem quando o caixão baixou sepultura.
Saí do cemitério do Catumbi sozinho, minha amante achou por bem não me acompanhar.
Peguei um taxi que me deixou numa feira. E comprei uma dúzia de limões.
2 comentários:
Excelente!
Obrigado, Luis, parceiro de letras!
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