Ela, nem bem se sentou, pediu uma água com gás.
Absolutamente, não sou capaz de adivinhar as suas vontades. Cheguei a desistir
em tantas oportunidades… Quando me chamou para o bar do Silva, tentando prever
as consequências, tomei logo um protetor para o fígado, já que nos últimos dias
não venho me sentindo bem; enjoo com facilidade. Na mesma toada, confuso, pedi
uma água com gás. Então, ela me interrompeu e jogou a interjeição: “Ué, uma
água com gás? Tão previsível”. Tive de me rebolar para expressar que não era
uma mera repetição. “Parece que você percebeu que não posso beber. Estou ruim
do estômago”. “Ah, Fagner, lá vem você com coitadismo. É isso, quer me chantagear,
de cara?!”. Nada. Falava ingênuo, até de certo modo abobalhado. Estava, sim, surpreso
em encontrá-la, frente a frente, depois de tantos percalços. “Você devia ser
mais honesto consigo mesmo”. Enquanto eu elaborava o encontro, ela soltou, como
sempre, a provocação. “Não, por favor! Não queira levar a conversa para outro
lado. Se estou aqui, é para resolvermos nossa situação”, falei. “Pois, para
mim, está resolvido. Você que entende tudo errado. Gosto de você. Mas é aí que
mora o perigo; se não declarar milimetricamente a palavra certa, você me
interpreta mal e tudo desanda para o amor infantil. Carinho, entende? É isso”.
Ela havia me salvado, como em outros momentos, do enfado do horário de almoço,
quando deveria estar com o grupelho de gananciosos da firma. Por isso, pensei
que o fato de mudar, alterar o roteiro, e estar com ela, já valia muito, e não
persisti em questionamentos baldados. “Bom, é o seguinte: te chamei aqui para
dizer que vou voltar para a minha terra (Que terra? O local que nunca revelou).
São Paulo é uma cilada; um engano para mim. Já era!”. Não. Não era possível. “Como
assim? Você mora aqui há, sei lá, uns dez anos, tem emprego estável, casa e
tudo mais. Por que essa decisão precipitada, agora?”. A verdade é que, desde
que nos separamos, nutria um desejo incontido, velado, de reatar o relacionamento.
Brigamos por bobeira, coisa pouca; não era motivo para a partição definitiva. “Fagner,
vou ser bem sincera…” – virou o rosto; deixou-o pender sobre o tronco, olhando
para a mesa. “Saber que você está por perto é a dificuldade com a qual não sei
lidar. Você não se resolve; não se emenda; o trabalho é um fiasco; a sua vida é
um caos. E fico pensando: será que tenho parte nisso? Não posso ser atormentada
pela dúvida. Devemos seguir!”. No imediato instante, respondi que não. “Não!
Você não tem nada a ver com as minhas questões pessoais. Se estou aqui; se
estou inundado em dilemas, foi culpa minha. Não se sinta responsável por isso.
Pelo contrário, você me ajudou em muitos pontos a ser melhor; a enxergar a
desolação que me compromete. Eu que não fui capaz de superá-la. Se for embora,
que seja por outra razão, por favor!”. Ela pegou um bilhete amarrotado da calça
e me entregou; deixou uma nota de cinquenta na mesa e saiu. Ela tem uns ímpetos
que não sei distinguir para que lado devo ir. Com o volume de gente, focado na
minha descomunal timidez, não consegui interromper o curso. Ela se foi
deslizando, muito segura, por entre as pessoas, e se misturou até não ser mais abrangida
por minha visão míope. Gerson, o garçom que invariavelmente nos atende – claro,
só havia dois; e Gerson era responsável por aquela mesa –, perguntou se queria
algo, se não iria almoçar. Pedi um café e um pão na chapa, para ludibriar os
espaços vazios. Comecei a debulhar o conteúdo da carta. Nela, há um começo
peculiar, que me dobrou os sentidos: “Você é uma pessoa especial, saiba disso.
Mas eu não tenho forças para continuar no papel de mãe, de protetora, que, nos
aperreios, vem lhe socorrer. Estando aqui, mesmo que distante, ficaria
preocupada, arranjando meios para lhe salvar. É preciso cortar o cordão umbilical,
entende? Você já é grande o suficiente para dar conta disso tudo que fez. Eu,
onde estiver, rezarei por você; para que vença o que não pode ser. Procure
ajuda. Procure se tratar…”. Ela, felizmente, acionou o gatilho: preciso ajustar
as conexões, que me confinam no lugar da inépcia, da paralisia abstrusa. De uma
vez por todas, por ela, vou procurar ajuda… Talvez ela esteja blefando e não voltará
para a sua “terra”. Não tem para onde ir… É isso. Ela me ama! Ela vai encontrar
um novo homem, o Fagner de cabeça erguida, são e salvo. Serei para sempre dela.
Que seja, vou procurá-la nos confins da existência.
1 comentários:
Muito bom!!!
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