Ajeitada na velha
cadeira colocada na calçada da pequena hospedaria que administra, Carminda observa
a noite que cai. O costumeiro xale a lhe cobrir os ombros, os pés metidos em
sapatos de pano, aspecto que em nada lembra a menina cheia de ideias que foi um
dia. Desolada, de cabelos brancos, opacos, olha o movimento rotineiro das
pessoas da vila. Em intervalos longos, os carros passam. Lentos. Mas, mesmo
assim, a poeira da rua pouco cascalhada incomoda os olhos. Acende um cigarro,
contrariando a ordem médica. Não quer saber. Atingiu uma idade em que apenas
atende as próprias vontades. As mais simples. Para as outras, já não há espaço.
Sonhou tão alto. Não
foi infeliz, mas deveria ter nascido num mundo mais avançado. Sentia-se adiante
no tempo. Aquele lugarejo tolhera seus horizontes. Traz tanta coisa no peito,
tanta fala engolida, mas, ali, nem as opiniões podiam ser externadas. Ela sempre
foi diferente, ninguém compreenderia. Só o marido, companheiro dos voos
sonhados. Voaram, ainda que só em pensamento.
Pensa nos pais. Estrangeiros,
fascinados pela promessa de conquistas aqui, nesta terra, cruzaram o oceano a
bordo de um navio apinhado de esperançosos, desembarcando em Santos, no ano de
1918. Na bagagem, força de trabalho e sonhos. Prosperaram. E testemunharam que conquistas
não são apenas riquezas. Foram felizes, ainda que por pouco tempo, mas foram.
Tiveram duas filhas: Angelita e Carminda. Lindas, saudáveis. Certamente, as
maiores vitórias.
Época de grandes
epidemias, a mãe, de início, resistiu a um acometimento, mas não teve a mesma
sorte quando enfrentou a escarlatina. Dias e dias de delírio, febre insana. Não
resistiu. As meninas entravam na fase da adolescência. O pai, caixeiro-viajante,
sem alternativa, internou as meninas num famoso colégio que ficava na Capital.
Instituição renomada e dirigida por religiosas.
De início, tudo foi
assustador. A falta da mãe, do quarto, da casa, das refeições alegres, das
brincadeiras, das histórias contadas antes de dormir. Mudança difícil para ser
assimilada assim, bruscamente. De repente, tudo passou a ter horário fixo,
inflexível. Diferente da complacência da mãe. Não havia possibilidade de
alterar nada, absolutamente nada, apenas seguir em frente.
Adaptaram-se ao
internato. O requinte do ensino era prioridade da instituição. Era oferecido,
além do estudo acadêmico, um leque de atividades. Aprenderam: costura, bordado,
pintura, culinária, boas maneiras. Inteiraram-se da literatura, eram leitoras
vorazes. Dedicadas, interessadas, exemplares, não foi difícil conseguirem uma
convivência amistosa.
Aos domingos, quando
não estava viajando, o pai sempre as visitava. Conversavam, ganhavam docinhos,
balas. Alegria nas chegadas, tristeza nas partidas. E os anos se passavam. Para
as meninas, o internato era de janeiro a janeiro. Não iam para casa nem mesmo
nas festas de final de ano. Aliás, não havia casa. Com o tempo, o pai decidiu
vender o imóvel. Morava em uma pensão. Além de menos oneroso, era muito menos
solitário. A casa era povoada de recordações, ele não conseguia lidar e
conviver apenas com lembranças. Queria a vida, lutaria até seus últimos dias
pela educação das meninas.
E lutou. Mas o velho
coração, num ataque fulminante, interrompeu a batalha. As meninas ficaram
chocadas quando um parente distante apareceu no internato. Sem meias palavras,
a verdade foi contada. E a dor foi infinita. Choraram, silenciosamente.
Angelita era a mais velha, mas ainda não era adulta. E assim, por determinação
do tio, que mal conheciam, foram obrigadas a deixar o internato. Foram morar numa
vila do interior. Distante, muito distante da Capital. Viajaram quase dois dias
para chegar à nova morada. O tio era comerciante
de calçados, casado com uma senhora muito refinada, prima de Santos Dumont. Não
tinham filhos. A esposa, inconformada de morar naquele fim de mundo, vivia em
constante litígio com o tio. Não demorou muito, a vontade da mulher venceu a
demanda e se mudaram para Minas Gerais. Mas deixaram para trás as duas meninas.
Elas nunca souberam o
que foi feito do dinheiro do pai. Foram deixadas ali, sem eira nem beira.
Sozinhas. Através de ajuda de um e de outro, Angelita conseguiu uma sala para
dar aulas, espaço cedido pela prefeitura. Ganhava uns trocados. Carminda
bordava enxovais. O serviço era de tamanha perfeição que em pouco tempo
conseguiu encomendas até mesmo das grandes cidades. Um primor.
Ainda procurando
adaptação, receberam a notícia de que precisariam desocupar a edícula da casa
do tio, onde viviam. Os novos proprietários iriam utilizar aquela área. E então
foram acolhidas por uma prostituta. Passaram a viver em dois cômodos locados a
preço simbólico e as duas continuaram trabalhando.
Angelita conheceu Samir.
Apaixonaram-se. Depois de vários meses, ficaram noivos. Havia muitos planos
para um futuro próximo, preparavam o casamento. Então, apareceu na cidade um
engenheiro mecânico alemão, homem bonito, loiro e de misteriosos olhos azuis.
Chegara para programar o serviço de abastecimento de água na cidade, expandir a
área de distribuição. Assim que botou os olhos nele, Angelita perdeu a paz. Foi
um amor tão arrebatador que não havia como controlar. De ambos os lados.
O noivado com Samir
acabou. O forasteiro era casado, morava na Capital. Não escondeu, não mentiu. Angelita
sabia que havia outra família, mas não se importava. Não demorou nada,
engravidou. Para os moradores, foi um flagelo. Os alunos, aos poucos, foram se
afastando até que a prefeitura não mais permitiu o uso da sala. Passou, então,
a ajudar a irmã nos bordados.
Com a gravidez, o
engenheiro abandonou a outra família, o casamento acabou. Quando a criança
nasceu, Angelita estava muito debilitada. Quase não conseguia amamentar a
filha. Era visível o esmorecimento do corpo, a prostração que acometia a mãe.
Começaram as febres noturnas, o suor abundante, a inapetência, a tosse. A
tuberculose foi diagnosticada. As poucas pessoas da cidade que falavam com ela,
afastaram-se. Até mesmo o pai da criança deixou de visitá-la. E partiu...
Angelita era cuidada
pela irmã e pela prostituta. Revezavam-se nos cuidados com a mãe e com a filha.
A menina recebeu o nome de Lenita, e quando completou um ano, a mãe sucumbiu.
Não resistiu ao mal.
Carminda ficou com a
menina e cuidava dela como se fosse sua filha. Era tanto amor, tanto carinho,
tanto desvelo. Quando a tomava nos braços, sentia que o coração que batia ali
era também de Angelita.
Samir assistira a tudo,
distante. Como sofreu com a morte de Angelita! E não escondeu. Conversava
longas horas sobre isso com Carminda. Afeiçoou-se à menina, sentia-se próximo.
E a criança retribuía. A convivência, intensificada dia a dia, foi trazendo uma
sensação de família, de aconchego. Não seria possível dizer que entre eles
havia um sentimento arrebatador, mas havia amor, algum tipo de amor. E assim,
os dois passaram a viver juntos. Os três. Na casa, os móveis eram de caixotes.
Os vestidos da menina, mesmo feitos de sacos de farinha, eram lindamente
bordados. Lenita tinha beleza angelical. Amada, muito amada.
A mãe de Samir,
comerciante de roupas e calçados, ofereceu parceria em uma filial que seria
aberta numa cidade próxima. E foi um sucesso. Os dois, numa união serena, cheia
de carinho, de respeito, conceberam um casal de filhos. Eram três riquezas.
Lenita herdou o amor pelos livros, lembrava a mãe. Aliás, era a figura da mãe.
A mesma beleza, a mesma altivez, a mesma força. Meiga, agradecida. Casou-se e
foi imensamente feliz... Assim como os outros filhos.
Samir e Carminda
mudaram de ramo. Adquiriram a hospedaria e moravam ao lado, parede-meia. Ela
continuou com o trabalho das agulhas, uma artista. Lia vorazmente.
Era serena...
− Já é tarde, a noite
está fria, vamos entrar... – Sente a mão delicada de Samir pousar em seu rosto,
com a mesma suavidade da vida toda. Foi feliz, é feliz...
Amparada pelos braços do
parceiro, caminha em direção à porta. A noite está realmente fria. Sente-se
exausta. Sabe que é chegada a hora de descansar...
Regina Ruth Rincon Caires
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