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quarta-feira, 17 de março de 2021

Janela aberta - um conto de Fátima Brito

 JANELA ABERTA


“Ele tinha o sol em suas entranhas.” (Pablo Picasso)

   Um choro escapou pela janela do quarto. Eu era então muito jovem, ainda nem tinha dezoito. Era do bebê que encantava a vizinhança quando saíamos a passear pela rua. Era o meu bebê,  sempre rechonchudo e macio desde o primeiro dia quando escorregou do meu ventre, aninhando-se em meus braços e eu pude sentir aqueles fiapos loiros acarinhando as ideias que ele um dia viria a ter. 

   Um choro escapou pela janela do quarto. E eu de novo o olhei e apanhei seu choro e o fiz riso e cantei-lhe a mesma música de ninar e sorri com ele imaginando o dia em que ouviria sua voz cantar. Desde o primeiro dia em que nos vimos, sempre o aninhei. E ele falava comigo. Falava mudo, sem dizer palavra, com a boca cheirando puro leite. Seus olhos brilhavam muito mais que todos meus sonhos juntos e diziam-me só beleza.

   Braços estranhos aos meus nunca tinha experimentado. Ele dormia com o narizinho afundado em meus cabelos e eu ouvia sua respiração leve dizendo nana nana nana. Eu passei a dormir em paz.

   Pela janela daquele quarto só eu aparecia, sempre acompanhada por ele, que foi se tornando um menininho alegre, magrinho como eu. Não tínhamos pai. Ambos os pais tinham morrido pra nós. Eu e ele formávamos aquela família e os dias iam correndo como corria meu menino pelos cômodos da casa grande em que me deixaram abandonada, achando que não resistiria. Resisti. Por ele. Pelas palavras que um dia ele me diria, algumas em sagrado segredo. Por nossos sonhos. Ele também sonhava por mim.

   Me fiz mãe e irmã e pai e irmão e vó e vô e também me fiz primos e o fiz feliz, plantando o sol em suas entranhas e expelindo de minha vida a escuridão. Ele era minha lembrança e minha esperança e tudo foi fluindo até que.

   Ele voltou e se instalou ali. Ele voltou e se instalou ali, desestruturando nosso território com seus cheiros, chacoalhando nosso ninho com seus passos de gigante desorientado.

   Eu não queria e chorei e gritei pra vizinhança toda ouvir, mas todos se fizeram surdos, afundados na indiferença, preocupados com suas próprias e mesquinhas lutas. E o meu menino não dormia mais com o narizinho em meus cabelos e ele foi parando de correr alegre pela casa e quase não mais aparecia na janela, que agora permanecia fechada.

   A casa foi mofando, parecia tão velha com aquelas teias se formando mais rápido que minha habilidade em exterminá-las. Um cheiro inconfundível foi tomando o ar e até aquela rachadura que eu nunca tinha visto apareceu, enfeiando a parede do berço que nunca tinha abrigado seu corpinho, sempre alojado ora em meus braços, ora em minha cama, ou correndo com o vento pela casa, espalhando a fina poeira. Eu temia que o sol em suas entranhas deixasse de brilhar.  Então me fiz muda e, em uma das tantas noites de insônia, tramei meu plano.

   Quando o vi  nocauteado pela cocaína misturada com o conhaque que parecia inebriar o pequenino, fazendo-o dormir sem sonho em um colchãozinho ao lado da cama de casal, ousei abrir a janela. E a imagem do revólver invadiu-me como a luz do sol. Há muito não via nada mais claro em minha mente. 

   A arma repousava inútil, aninhada entre os livros da biblioteca. Ela era muito grande, tão grande que eu não conseguiria segurar. Mas poderíamos os dois carregá-la. Suas mãos macias, ainda que só acostumadas aos carinhos, bem poderiam me ajudar. Então, eu faria o resto. Miraria bem no centro. E apertaria com gosto. E o sangue escorrendo quente seria minha senha e me faria voltar a cantar canções de ninar e a nanar. E eu lhe diria: meu pequeno e corajoso guerreiro.

   Fiscalizei o céu sem estrelas e olhei com ódio as janelas fechadas que cercavam nossa casa. Cuspi com gosto e minha saliva grossa deve ter atingido alguma flor. 

   Dormi e sonhei. No dia seguinte, saí bem cedo pra comprar as balas. Uma só bastaria, mas eu preferia me precaver. Ele merecia pelo menos quatro, uma pra cada ano de abandono.

   O sol estava firme. E as janelas dos vizinhos já estavam todas escancaradas. O cheiro de manhã me alegrou e consegui sentir o cheiro de nossa casa sem mofo. Antes de voltar, compraria uma tinta bem alegre e contrataria os serviços de um pintor. Não queria o mofo nem a rachadura. Passo apressado do tamanho de minha agitação. Tropecei em alguns vizinhos e não lhes dei bom dia. Minha magreza ocupava todos os espaços da rua onde só havia olhos pra mim. Eu antegozava o prazer do sangue rolando até o corpo restar pálido e ser examinado pela polícia.

   A dose de cocaína seria mais alta que a de costume, a de conhaque também. E eu, chorando, contaria “tentei evitar, tentei, gritei, pedi socorro, mas nenhum vizinho me ouviu!”. Eles me olhariam penalizados com minha dor. Cobiçariam minha magreza e juventude e a cor dos meus olhos. E eu os faria vermelhos de vergonha pela indiferença indesculpável com que haviam tratado meu desespero. “Ele não tinha mais como pagar, estava consumindo muito e os conhecidos não queriam mais esperar pra receber; eles não acreditavam que ele teria como acertar o que devia... Eu avisei, desde o começo eu avisei, avisei que o amava e que aquilo não era certo com a gente... Não era certo com nosso filho... Tão pequenininho, tadinho...” E choraria mais, choraria com verdade e, quase sem conseguir conter os soluços: “Ele não quis me ouvir...”

   Então, eles olhariam entristecidos, mas conformados, meu menino dormindo no berço. Pela primeira e última vez, ele dormiria ali, alheio a tudo,  sem sonhos, embalado por aquele comprimidinho que eu dissolveria em seu leite. Suas mãos limpas no dia seguinte voltariam a brincar com carrinhos, correndo pela casa com o sol entranhado nas entranhas. Eu carregaria a arma sozinha. Minha raiva era bastante para. Não sujaria suas mãos com pólvora. Suas mãos destinavam-se para o sol e isso eu já tinha visto nas cartas muito antes de ele nascer.

   O sol, o mago, a força, o mundo. XIX, I, XI, XXI. Aquelas cartas lindas, postas sobre a mesa com toalha e velas brancas na tarde em que sonhei com ele antes mesmo de concebê-lo. O vento era fraco e suave, cantando uma certeza. Eu sabia que conceberia o que de mais lindo estava destinada a conceber. E foi como se o universo todo caminhasse em mim, cada átomo entrando devagar como se pedindo licença até que não havia nada mais fora de mim. Assim o concebi. Só eu.

   Quase feliz apressei ainda mais o passo mais firme que meus pés já tinham visto. Munição. Tinta. Pintor. Sonífero.  O mesmo caminho de volta, mas sem tropeçar em vizinhos.

   No jardim, minha saliva grossa parecia borbulhar sobre uma margarida.

  Manuseei a chave com cuidado. Não queria acordá-los. Antes prepararia um café e me mostraria diferente. “Eu tive um sonho em que alguém me dizia pra te perdoar. Acho que era Deus. Era Deus que me pedia pra te perdoar, que você precisa de nós. Que você vai melhorar. Pronto. Vou te perdoar. Vamos selar nosso reencontro com esse café. Eu, você e o menino.” E, ele, com aqueles olhos agressivos e ao mesmo tempo distantes como se eu fosse uma ameba tentando uma comunicação impossível com um ser superior. Mas eles não me incomodariam porque eu sabia que a vida para ele, a partir daquele momento, não passava de uma contagem regressiva. Não duraria mais que vinte horas. Para mim, longas vinte horas.

  Café pelando na chaleira, frios e pães sobre a mesa, subi eufórica. Era verdade, eu nunca tinha concebido um plano assim tão bom. 

   Contive a alegria e abri devagar a porta do quarto.

  Caí ajoelhada. Contive o grito, mas não a convulsão de meu corpo que se manchou com o sangue ainda quente que escorria.

   Seu corpo perdia a cor, que escapava pelos buracos da testa e do peito. Quem chegara antes de mim pra me furtar o prazer de uma última vingança?  Rápido, percebi o risco. O medo tomou-me como uma chicotada impiedosa fazendo tremer toda minha espinha, arrepiando todos meus pelos, tirando-me o chão para nunca mais repô-lo. Desesperada, desviei meus olhos e vi o colchãozinho vazio!  Temia encarar a verdade. Então, a porta fechou-se! Uma rajada de vento entrava pela janela que eu tinha esquecido aberta. Olhei na direção contrária e certifiquei-me daquilo que já imaginava: o berço também estava vazio. Completamente vazio.

    Em desespero, levantei-me. Meu corpo liberava descargas como se entrando em transe, mas eu segui até a janela. Apoiei-me no parapeito e gritei com uma força que não imaginava ter. E continuei gritando pra que todos – e também  o sol o mago  a força o mundo o doido - sentissem minha dor.  Mas de nada adiantou. Eles não fizeram nada a não ser chamar a ambulância. Mesmo anestesiada, debati-me o quanto pude até sentir o poder da roupa estranha com que me vestiram. Sem qualquer alternativa, segui para uma clínica. Apenas um consolo: no jardim a margarida crescia monstruosa.

    Não sei bem quanto tempo passei naquele lugar. Nem quero saber. Só sei que meus passos nunca mais foram firmes, o medo os faz cada dia mais inseguros. Minha voz nunca mais foi capaz de gritar, nem de entoar canções de ninar e eu tenho passado cada um dos anos de minha vida a perseguir o enigma daquele início de manhã, a tentar descobrir o itinerário do destino de meu menino magrinho e ensolarado. E, ainda hoje, ainda órfã,  com os cabelos embranquecidos, imagino que sua cabeça tenha acarinhado ideias brilhantes, que um dia chegarão a mim por meio de sua voz de homem.

    Quase todo dia vejo reflexos nos espelhos da casa e algumas luzes que surgem de repente. Cenas de sua vida chegam até mim e agradeço ao universo por esses presentes. Mas quero mais, quero o desenho todo, quero a cena completa, aspiro à história inteira. Recorro ao tarô e espero, cada vez menos, sua voz pra me ninar e reafirmar aquelas palavras mudas, vivas, ressoando no passado. Penso que estou morrendo.


Do livro "Segredos e Prazeres", Editora Patuá, 2018.




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Rafael F. Carvalho
Autor do livro A Estante Deslocada, é paulistano, nascido em 27 de Fevereiro de 1978. Foi publicado em antologias de novos escritores e em jornais universitários, e é formado em Letras pela Universidade de São Paulo.


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