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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Sarah - Rubens Borba de Moraes

 Sarah


Rubens Borba de Moraes



I


Entrou. Sentou-se a um canto. Ninguém pôs-lhe reparo. Mas o mestre, que limpava modelos velhos, descobriu-a e perguntou-lhe :

— Que vieste fazer aqui?

Respondeu:

— Vim desenhar.

E ele compreendeu que ela não era como os outros e indagou que preferia desenhar.

— Um torso.

Deram-lhe um pedaço de papel. Mas pediu uma folha muito grande. Não havia folha bastante grande. Então uniram várias sobre uma prancha; e ela começou a desenhar um torso. Mas o torso era tão grande que não cabia no papel. Pouco importava, porque era belo.

E o mestre perguntou:

— Onde aprendeste anatomia?

— Que é anatomia?

— O estudo dos músculos, disseram-lhe.

Compreendeu e lembrou:

— Ora! vi tantas vezes as galinhas que corriam quando lhes levava milho; e meus músculos também, ao me banhar no rio...

E todos a amaram e lhe disseram que voltasse a desenhar. Respondeu que não tinha dinheiro. Mas o mestre acariciou-lhe os cabelos e disse:

— Aqui não se paga.


II


Voltou todos os dias. Sentada a um canto desenhava torsos, mas belos e puros. Uma vez chegou-se ao mestre e disse:

— “Me” corte os cabelos?

Ele, sorrindo:

— Nunca fiz isso, mas vou tentar.

E com uma enorme tesoura enferrujada cortou-lhe os longos cabelos negros, que tombavam mortos, em torno dela.

Quando acabou, ela disse:

— Sinto-me bem. Obrigada.

E partiu, feliz, a nuca fresca.


III


Chegou-se para nós e falou:

— Não posso voltar mais. Estou sem sapatos.

Mas um dos rapazes lembrou:

— Tenho três irmãos menores. As botinas do mais velho talvez te sirvam. Trarei um par usado.

Trouxe-lho. E ela continuou a vir diariamente, com os cabelos cortados e botinas de menino.


IV


Fiz anos.

Todos no meu quarto. Ela entrou e entregou-me uma reprodução de Gangin, dizendo :

— Dou-te isto.

Beijei-a; depois perguntei onde achará dinheiro para comprar o presente.

— Posei cinco dias, murmurou.

Quando voltei para São Paulo não chorou. Mas, ao beijar-me, seus lábios tremiam.


VI


Escreveu-me. Sobre a página branca havia:

“Tenho duas cerejas 

uma para mim outra guardo-a para ti.”

Só. Para que mais?


VII


Um dia, no atelier, recordavam-se de mim. E ela disse:

— Quero ir vê-lo no Brasil.

Mas o mestre contou-lhe que era muito longe o Brasil. Tão longe que não sabia calcular quanto tempo gastava para lá ir. Então um rapaz muito pálido e magro falou:

— Sei somar; e vou fazer a conta.

Sentaram-se todos em roda. Puseram diante dele uma folha de papel; mas como a soma era muito comprida pegaram uma grande folha de papel. E o rapaz muito pálido e magro somou dia por dia quanto tempo ela precisava para vir ao Brasil. Quando a soma estava pronta uma aluna que tinha nariz de trombeta aconselhou:

— Ponha dois dias para as dores de cabeça.

E o rapaz muito pálido e magro ajuntou mais dois dias para as dores de cabeça e anunciou que era preciso caminhar dois anos e dois dias para vir ao Brasil.

Mandaram-me o resultado da soma. Não mandaram todo o cálculo, porque era muito grande.


VIII


Espero-a. Sei que virá.


IX


Sarah!...

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Rafael F. Carvalho
Autor do livro A Estante Deslocada, é paulistano, nascido em 27 de Fevereiro de 1978. Foi publicado em antologias de novos escritores e em jornais universitários, e é formado em Letras pela Universidade de São Paulo.


todo dia 17


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