Sarah
Rubens Borba de Moraes
I
Entrou. Sentou-se a um canto. Ninguém pôs-lhe reparo. Mas o mestre, que limpava modelos velhos, descobriu-a e perguntou-lhe :
— Que vieste fazer aqui?
Respondeu:
— Vim desenhar.
E ele compreendeu que ela não era como os outros e indagou que preferia desenhar.
— Um torso.
Deram-lhe um pedaço de papel. Mas pediu uma folha muito grande. Não havia folha bastante grande. Então uniram várias sobre uma prancha; e ela começou a desenhar um torso. Mas o torso era tão grande que não cabia no papel. Pouco importava, porque era belo.
E o mestre perguntou:
— Onde aprendeste anatomia?
— Que é anatomia?
— O estudo dos músculos, disseram-lhe.
Compreendeu e lembrou:
— Ora! vi tantas vezes as galinhas que corriam quando lhes levava milho; e meus músculos também, ao me banhar no rio...
E todos a amaram e lhe disseram que voltasse a desenhar. Respondeu que não tinha dinheiro. Mas o mestre acariciou-lhe os cabelos e disse:
— Aqui não se paga.
II
Voltou todos os dias. Sentada a um canto desenhava torsos, mas belos e puros. Uma vez chegou-se ao mestre e disse:
— “Me” corte os cabelos?
Ele, sorrindo:
— Nunca fiz isso, mas vou tentar.
E com uma enorme tesoura enferrujada cortou-lhe os longos cabelos negros, que tombavam mortos, em torno dela.
Quando acabou, ela disse:
— Sinto-me bem. Obrigada.
E partiu, feliz, a nuca fresca.
III
Chegou-se para nós e falou:
— Não posso voltar mais. Estou sem sapatos.
Mas um dos rapazes lembrou:
— Tenho três irmãos menores. As botinas do mais velho talvez te sirvam. Trarei um par usado.
Trouxe-lho. E ela continuou a vir diariamente, com os cabelos cortados e botinas de menino.
IV
Fiz anos.
Todos no meu quarto. Ela entrou e entregou-me uma reprodução de Gangin, dizendo :
— Dou-te isto.
Beijei-a; depois perguntei onde achará dinheiro para comprar o presente.
— Posei cinco dias, murmurou.
Quando voltei para São Paulo não chorou. Mas, ao beijar-me, seus lábios tremiam.
VI
Escreveu-me. Sobre a página branca havia:
“Tenho duas cerejas
uma para mim outra guardo-a para ti.”
Só. Para que mais?
VII
Um dia, no atelier, recordavam-se de mim. E ela disse:
— Quero ir vê-lo no Brasil.
Mas o mestre contou-lhe que era muito longe o Brasil. Tão longe que não sabia calcular quanto tempo gastava para lá ir. Então um rapaz muito pálido e magro falou:
— Sei somar; e vou fazer a conta.
Sentaram-se todos em roda. Puseram diante dele uma folha de papel; mas como a soma era muito comprida pegaram uma grande folha de papel. E o rapaz muito pálido e magro somou dia por dia quanto tempo ela precisava para vir ao Brasil. Quando a soma estava pronta uma aluna que tinha nariz de trombeta aconselhou:
— Ponha dois dias para as dores de cabeça.
E o rapaz muito pálido e magro ajuntou mais dois dias para as dores de cabeça e anunciou que era preciso caminhar dois anos e dois dias para vir ao Brasil.
Mandaram-me o resultado da soma. Não mandaram todo o cálculo, porque era muito grande.
VIII
Espero-a. Sei que virá.
IX
Sarah!...
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