Conheci uma pessoa de outro
tempo. Ou de outro mundo. Como qualquer outra, concebida não sei se por
descuido ou de maneira programada, e que chegou ao mundo em casa, pelas mãos de
uma parteira. A mesma parteira que pegara seus irmãos, seus primos, e todas as
crianças que por ali chegaram naquelas últimas décadas.
Cresceu, teimosamente,
numa época onde não existiam vacinas, onde a pólio corria solta. Não havia
família que não contabilizasse o infortúnio da morte de uma ou mais crianças nos
primeiros anos de vida. Se não pelo sarampo, pela pólio, pela tosse comprida,
elas sucumbiam por pequenas infecções que, por falta da penicilina ali na vila,
se alastravam pelo corpo. E, impiedosamente, morriam...
Pessoa astuta, sem
sossego, sem parada com as pernas e com a cabeça, vivendo num lugar aonde a
água chegava por braços que giravam os sarilhos das velhas cisternas, aonde a
luz chegou como resultado da engenhoca de imensos geradores movidos a óleo-diesel,
e que funcionavam com horário marcado. Isso mesmo! A iluminação era oferecida
aos moradores a partir das seis horas da tarde, e era interrompida pontualmente
às nove horas da noite. Durante três horas, era como se o dia se prolongasse,
mas, pontualmente às nove horas, impreterivelmente, tudo virava breu...
E, para os pequenos, se o
breu os pegasse na rua, era hora de tirarem os chinelos, e, com um em cada mão,
desatarem numa carreira desenfreada pelas ruas de terra e pedregulhos até que
ganhassem suas casas.
O escuro era temerário, a
imaginação ficava solta e buscava, infalivelmente, o medo.
E assim, nessa realidade
incrivelmente simples, aos cinco anos de idade, na avidez de descobrir o mundo,
além do compromisso das brincadeiras de todos os dias, da largueza, da liberdade
incondicional onde não havia descanso nem feriado, realizava-se assistindo às
aulas do curso de adultos que funcionava num salão a dois quarteirões de sua
casa.
Diariamente, as aulas
começavam às sete horas da noite e terminavam às nove, razão pela qual sempre
estava a correr pelo breu com os chinelos nas mãos...
Encantava-se com aqueles
homens e mulheres de modos simples, de trajes humildes e puídos, rostos
cansados, peles maltratadas pelo sol excessivo de anos e anos a fio, mãos
calosas e duras, mas que ali, instalados desajeitadamente naquelas velhas
carteiras feitas para crianças, ali, naquela sala de aula, escondiam-se atrás
do brilho dos olhos querentes por aprender. E a professora, paciente e terna,
de carteira em carteira, segurava mão por mão, flexionava braço por braço,
punho por punho, e com muito esforço ensinava cada um a fazer um círculo, um
traço, um rabisco funcional. E, como num milagre, chegava à letra “a”, “e”,
“i”... Tudo como se fosse mágica!
E nessa magia de todas as
noites, como ajudante da professora sábia e generosa, apagava o quadro-negro,
recolhia e distribuía os cadernos, varria a sala, recolhia o lixo, abria e
fechava as janelas e porta nas noites de chuva e ventania. E prestava muita
atenção a tudo o que era ensinado e falado. No final daquele ano, quando
completou seis anos, estava alfabetizada. Lia mais facilmente do que escrevia.
Mas, escrevia...
E, assim, o mundo se
abriu...
Sabia ler, e agora poderia
assistir até às sessões do Cine Santa Maria! Tudo ganhara novo encanto! Era
capaz de ler todas as legendas dos filmes estrangeiros, se bem que muitas vezes
algumas apagavam antes que conseguisse ler tudo. Na verdade, a leitura ainda
estava um pouco lenta.
Foi brilhante no curso
primário, e menos, bem menos no ginasial. A mudança, de uma única professora,
aquela que na sua cabeça funcionava como uma mãe adotiva, única, sábia,
onipotente, para vários professores, cada um restrito a uma matéria, essa
mudança demorou a ser digerida por ela, se é que foi... Um tremendo desconforto.
Da aritmética, estudada
até então, passou para a matemática moderna. De repente, a ciência exata não se
resumia apenas a somar, subtrair, multiplicar e dividir. Não bastava ter
decorado a tabuada. Passou a ser: conjunto, intersecção... E isso não fazia
sentido na sua cabeça. Depois vieram teoremas e teoremas... Para que aprenderia
aquilo?!
E em toda a sua vida
acadêmica, não se lembra de ter estudado física, química, e sabe que, por mais
que tenha tentado, nunca entendeu a matemática. Nunca soube o que era
logaritmo, álgebra, mecânica quântica, como se calculava a velocidade, a
potência, a capacidade, o impacto... Não sabia nada de nada... E participava de
tudo. Dos desfiles comemorativos, dos jogos, dos eventos religiosos, políticos,
festivos... E andava... Como andava! Era feito serelepe. Conhecia cada palmo de
chão da pequena vila. E sabia do costume de cada morador, de cada um dos
amigos.
Quando não estava na
escola, a programação era quase que sacramentada. Às duas horas da tarde
pontualmente, durante os dias de semana, precisava estar na casa de Dona Nair
para ouvir a novela do rádio. E tinha novela que se estendia por mais de um
ano! E foi através do rádio que soube da morte de James Dean, de Jeff Chandler,
da execução monstruosa de Caryl Chessman,
da morte do presidente Kennedy, de Marilyn Monroe...
E, aos doze anos,
conheceu a TV, aos treze, conheceu o telefone. Apaixonantes! Como a imagem, feito
um cinema em caixa, chegava até às casas?! Como uma pessoa falava de outra
cidade, distante, e podia ser ouvida através daquele aparelho preto que era
encostado no ouvido, na orelha?! Era possível ouvir tudo como se a pessoa
estivesse no cômodo ao lado!
E quando com quatorze
anos, foi estudar em outra cidade, conheceu de perto o semáforo. Verdade! Até
ali aprendera, através de desenhos, gravuras e filmes, as cores do semáforo, o
que representavam: PARE - OLHE – PASSE. Mas ali estava diante de um, ao vivo,
em cores. E naquela noite não dormiu direito. Ficou intrigada e matutando... Como
é que o semáforo sabia que estava vindo carro do outro lado, e sinalizava para
que o trânsito contrário parasse?! Levou tempo para perceber, isso sem
perguntar a ninguém, que o semáforo NÃO SABIA que havia carro vindo do outro
lado, que tudo era apenas uma questão de tempo cronometrado para um lado e para
o outro, tudo fruto de um dispositivo que fazia parte da máquina, da engenhoca do
semáforo.
E foi normalista...
E curtiu a MPB, a Jovem
Guarda, o Tropicalismo, a Beatlemania...
E viu o homem chegar à
lua...
E curtiu a Copa de 70...
E dançou muito...
E, aos dezoito anos,
conheceu o mar. E se deslumbrou. E não acreditou.
Pela primeira vez via uma
montanha, uma serra. Aqueles picos altos, que enxergava diante dos seus olhos,
deixavam de ser a ilusão criada inicialmente por gravuras que a professora
colocava diante da classe para que fosse feita uma descrição, ou para que se
inventasse um texto, deixando a imaginação correr solta. A serra estava ali,
diante dos olhos. As montanhas, com as quais sempre sonhara sem nunca ter visto
antes, estavam ali. E se encantou...
E estudou, e se formou, e
se casou, e teve filhos...
E feito formiguinha,
trabalhou, trabalhou...
E como qualquer outra
pessoa, sonhou, acreditou, amou, sorriu, chorou...
E aprendeu a dirigir aos
trinta e dois anos...
E, aos quarenta e dois
anos, viajou de avião...
E conheceu o computador,
com ele teve que trabalhar. Que dureza!
E, aos quarenta e seis
anos, foi avó. Talvez como um presente para suavizar e enternecer o coração
abalado pelos atentados, pelas catástrofes, pelas tragédias do mundo moderno. Ninguém
continua igual depois de tantos solavancos... Mas a doçura devia ser
preservada..
E sobreviveu tentando
resguardar alguns poucos sonhos. E lutou para não se deixar endurecer demais,
para superar o medo, a angústia, a insegurança, a solidão. Como lutou,
misericórdia!
E envelheceu...
E continua aqui. Se não
com a mesma astúcia deixada pelo longo caminho, nem com a mesma avidez de
aprender, mas ainda com a mesma disposição de cuidar dos seus amores, que são
muitos e que foram se somando ao longo da vida. Só ficou mais apressada. O tempo
ficou precioso demais para ela. A jornada adiante é infinitamente mais curta do
que a já percorrida, e isso a angustia. Sempre pensa que há tanta coisa a ser
feita! Esta pressa que sente está atrelada ao viver, e não a qualquer outra
coisa. Morrer é inevitável, mas não desejável. E não há pressa alguma nessa
fila. Ninguém quer passar à frente, não existe tumulto. Ninguém reclama por
esperar. Existe apenas uma ordem desconhecida e silenciosa, e a fervorosa
torcida para que tudo siga a sequência natural, sem inversão, sem
sobressaltos... Os avós, os pais, ela, os filhos...
Conheci esta pessoa há
muito tempo, é uma amizade que vem de longa data, foi uma convivência intensa. Desfrutei
de suas virtudes, sofri com seus infinitos defeitos, tentei respeitá-la, mas,
por muitas vezes, não consegui.
E confesso que, mesmo me
esforçando muito, infelizmente nunca me apaixonei por ela. Muitos dirão: “que
pena!”. Mas só eu sei o que ela me fez passar... Quanto aborrecimento, quanto
medo, quanta solidão, quanta insegurança, quanta vergonha! Eu senti tudo isso na
pele...
Regina Ruth Rincon Caires
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