Apesar de já se terem passado duas semanas o Sr. Elias não conseguia esquecer a conversa das netas que ouvira por acaso. Em vez de deixar a mente divagar ao acaso enquanto trabalhava na horta ou no jardim ou quando se sentava em frente à televisão ao fim do dia, sem lhe prestar grande atenção, diga-se de passagem, dava por si a remoer aquelas poucas frases a que na altura não dera grande importância. Era incrível como umas meras palavras lançadas por umas miúdas podiam ter um impacto tão grande. Tinha até a certeza de que as netas já nem se lembravam do que tinham dito.
Tudo acontecera num domingo
igual a tantos outros em que filhos e netos vinham “à terra” para o tradicional
almoço dominical. Os seis filhos revezavam-se na visita aos pais idosos e calhara
a vez ao filho mais novo, o João, divorciado tal como a restante tribo, mas que
fazia questão de trazer sempre as duas filhas para que não perdessem o contacto
com os avós. Depois do almoço, demasiado pesado para um quente mês de julho mas
ninguém convencia Maria a mudar de hábitos, o filho ficara na sala à conversa
com a mãe, a quem fora sempre muito chegado, enquanto as netas iam para a
varanda das traseiras com os indispensáveis telemóveis e ele se metia na
cozinha a tentar arranjar a banca que subitamente entupira.
Com o calor acrescido de
várias horas de fogão e forno ligados o ambiente escaldava e decidira abrir também
a pequena janela lateral que dava para a varanda e que raramente abriam. Enquanto
se dedicava ao trabalho, bem mais complicado do que pensara inicialmente, ouvia
vagamente a voz das netas que deviam estar sentadas nas cadeiras de ferro um
tanto enferrujadas que ali colocara há muitos anos com a vaga intenção de as
usar para passar uns momentos entre o fim do trabalho e o jantar ou até depois
deste, se a noite estivesse boa. Mas pouco uso tinham tido e com os anos a
pesarem deixara até de as pintar periodicamente.
Atento ao que fazia,
pouca atenção prestava ao que as netas diziam, até porque duvidava que falassem
de algo que lhe pudesse interessar. Descobrira há muito que netos e netas
tinham gostos e interesses que nada lhe diziam e embora gostasse de os ver,
quem não gostaria, pouco convívio tinham. Tendo começado a trabalhar na terra muito
novo pouco estudara, o que aprendera dava para ler algumas coisitas no jornal
quando calhava ter um à mão e pouco mais. E o cultivo da terra nada dizia aos
netos e os animais que criava ainda menos, passadas as primeiras tentativas de os
tratarem como animais de estimação perdiam o interesse.
Mas quem sabe, a vida dá
muitas voltas e podia muito bem acontecer que um dia um ou mais deles
redescobrissem os prazeres de trabalhar a terra, como acontecera com a neta
mais nova do seu vizinho, o Manel, que tendo perdido o emprego na capital por
falência da empresa onde trabalhava se viera refugiar na aldeia do avô e agora não
queria outra coisa, introduzira novas culturas de que nunca tinham sequer
ouvido falar, restaurara a casa para acolher hóspedes e ganhava até mais do que
antes, segundo dizia, com a vantagem acrescida de ser mais ativa fisicamente.
Não estava pois a ouvir
conscientemente as netas, chegavam-lhe apenas algumas frases dispersas que
pouco ou nada lhe diziam. Mas às tantas, enquanto esperava que a cola que
aplicara secasse, aproximou-se da janelita numa tentativa de se refrescar um
pouco e aí, sim, ouvi-as claramente.
Como previra, falavam de
pessoas que desconhecia, talvez colegas ou amigas ou até cantores ou atores,
com esta nova geração nunca se sabia, agiam como se os conhecessem pessoalmente
à força de tanto lerem sobre eles. Só sabia que falavam da grande paixão entre
um Brad e uma Angie e de como gostariam de vir a ter algo assim, enfim, uma
conversa que na sua opinião não era exatamente própria de miúdas daquela idade,
com 10 e 11 anos deviam era estar a brincar, a correr, a aproveitar o facto de
terem ali tanto espaço para se mexerem à vontade. Mas ninguém lhe pedira a
opinião e sabia bem que se a desse seria recebida com um encolher de ombros e
um comentário tipo “os tempos agora são outros”.
Estava prestes a voltar à
sua tarefa quando ouviu a neta mais nova, a Sofia, dizer à irmã, a Lia, que era
a mais espevitada das duas:
— Porque é que achas que
os avós ainda estão juntos? Não achas que se não se amam deviam ter ido cada um
à sua vida, como os nossos pais?
— Mas porque é que achas
que não se amam?
— Algumas vez os ouviste
dizerem “amo-te”? Ou até beijarem-se como deve ser?
— Pois, nem nunca os vi
estarem de mãos dadas ou isso.
A conversa deve ter
continuado, mas para o Sr. Elias arranjar a banca era bem mais importante, a
sua Maria ia precisar dela nessa noite para lavar a louça do jantar, nunca fora
mulher de deixar a cozinha por arrumar, se não a pudesse usar iria certamente
buscar água ao quarto de banho para encher um alguidar e depois da trabalheira
com o almoço queria evitar que se cansasse desse modo. Por isso abdicara da
sesta depois do almoço para vir à socapa fazer aquela reparação.
Mas nos dias seguintes
deu consigo a remoer as palavras das netas. Nunca pensara no seu casamento em
termos de “amor” nem lhe passara pela cabeça que a solidez de uma união
estivesse em manifestações físicas em público.
Conhecera a mulher numa
festa popular da vila mais próxima quando tinha quinze anos, achara-a bonitinha,
mas a relação entre eles surgira aos poucos na feira semanal onde passara a ir
vender o que a família ia cultivando ou criando e onde ela tinha uma banca
mesmo ao lado da sua. Foram falando, descobriram que tinham ambos a mesma
vontade de permanecer na terra e não de ir para a cidade como os respetivos
irmãos e irmãs que assim que tinham idade suficiente partiam em busca de uma “vida
melhor”. Nunca fora uma relação como as dos poucos filmes que vira, havia alguma
atração, claro, mas havia, sobretudo, confiança e a vontade de percorrerem a
vida juntos.
Foram poupando alguns
tostões e acabaram por conseguir casar um pouco mais cedo do que antecipavam
graças a um problema com o pai dele que o impediu de continuar a cultivar a
terra, passando-a pois para o único filho que ali restava, o Sr. Elias.
Os filhos começaram a
surgir quase logo, com as despesas e doenças usuais, aumentando as dificuldades
de uma vida já de si laboriosa. Mas foram todos bem-vindos e se outros tivessem
nascido também o teriam sido. E como os tempos tinham mudado, mandaram-nos estudar
até onde quiseram ir, universidade incluída, apesar de saberem que isso
implicaria partirem definitivamente da terra.
Casaram todos, tiveram
filhos, divorciaram-se também todos, alguns voltaram até a casar ou a viver uma
nova relação. E durante todo esse tempo o elemento constante nas suas vidas
fora sempre a casa dos pais.
Quanto mais pensava no
assunto mais confusão lhe fazia a opinião das netas. Sim, sabia bem graças à
televisão e nas suas poucas idas à cidade para consultas médicas que o que se
via agora eram casais agarradinhos em público, aos beijos assolapados, enfim,
em cenas que, para ser sincero, o incomodavam um pouco, chamassem-lhe antiquado
mas continuava a achar que certas coisas deviam ser guardadas para a intimidade.
E mesmo aí, nunca se pusera naqueles propósitos com a sua Maria, não via razões
para o fazer e duvidava seriamente que ela quisesse isso.
Pois, ouvia muito dizer as
tais cenas eram amor verdadeiro, as netas pareciam ter a mesma opinião, mas a
verdade é que os próprios filhos, tão “apaixonados” quando namoravam, começaram
a ter quezílias cada vez mais intensas pouco de pois de casarem e acabaram por
divorciar-se por, segundo lhe disseram na altura, terem descoberto que nada tinham
em comum. Então o namoro não era para isso, para se conhecerem a fundo e verem
se havia compatibilidade de gostos e ambições?
Mas, como dizia um dos netos,
se não se evolui, morre-se. Por isso talvez não fosse má ideia tentar pôr um
pouco mais do tal amor no seu casamento. Começar, talvez, com algo fácil, um
simples “amo-te”.
Ensaiou a frase mais
vezes do que um ator do D. Maria antes da estreia da sua primeira peça, planeou
e descartou inúmeros cenários, enfim, andou de tal modo enfronhado que a Maria
até lhe perguntou se estava a chocar alguma.
Chegou finalmente o
grande momento, era agora ou nunca. Decidira fazê-lo ao fim da tarde, quando a
mulher se sentava na sala a dar uns pontos enquanto via um concurso televisivo
de que muito gostava. Esperou por um intervalo, sim, se o ia fazer mais valia
não dividir “o palco” com o que se passava no ecrã.
Aproximou-se então dela e
disse:
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