Estou
acometido por uma doença invisível, qual Jivago no romance infinito. Certo que
Jivago entendia de diagnóstico; era médico. Eu, um mero operador civil das
coisas burocráticas, ainda não consigo ligar os pontos. É preciso dizer, de
início: o que falo não tem nada a ver com a provocação ao sentimento de pena,
ou com melodrama de folhetim, para lhe comover, leitora; esse projétil de carta
não tem direção – pode atingir tudo ou nada. A questão é que, estando eu nessa
condição indizível, nem mesmo posso declarar aos meus, porque, como ocorreu em
outros tempos, diriam que basta ter ânimo; que não é nada; ou, o pior, que isso
é frescura ou molície programada de quem não quer enfrentar a vida. Desde
menino, me compromete uma sensação de amargura ou, repetindo o que diz o mestre
João Cabral de Melo Neto, uma melancolia entranhada. Houve um momento em que eu,
introspectivo, escutando as músicas que empurravam as emoções para baixo, como
Bach, Mozart, Debussy, Piazzolla, e até Eros Ramazzotti, me vi
irremediavelmente dentro de um corpo insosso, diferente das crianças que
atravessavam e bagunçavam a minha vida. Pois, do meu lugar, o instinto era de
me esconder fundo e não sair. Quanto à intuição – essa que me confia algum
socorro –, digo que me ajudava a preparar o terreno, para escapulir das
complicações do bolo familiar. Quando meu pai vinha, numa quinta ou sexta,
inteiro de cachaça, e arrebentava a tênue paz que insistia em se dispersar, eu,
como um esquivo ratinho, me comprimia entre os móveis do quarto e permanecia
aí, tapando os ouvidos, para não escutar os gritos e as determinações de minha
mãe para que eu viesse, logo, resolver o imbróglio deles, dos seres grandes,
imensos: os adultos; que eu teria, por obrigação tácita, de segurar o meu pai,
que quase todo final de semana declarava que ia abandonar a casa, abandonar os
pesos que supostamente carregava. No meu íntimo, sonhava que esse dia, de fato,
acontecesse, contrariando as perspectivas de minha mãe: “a família margarina” –
lustrosa por fora e gordurosa por dentro. Ela, acostumada às convenções e aos
decadentes moldes sociais, queria que fosse assim, e parece que não se
importava de que forma se daria a armação, se isso traria ou não consequências
para os seus filhos. Sim, trouxe, pelo menos a mim. Estou aqui para desaguar as
dores nas linhas do papel. Voltando ao ponto crucial, falo, hoje, que talvez tivesse
sido percebido em minhas limitações se minha condição de ser autista leve fosse
visível, algo palpável, para encher a mão e os olhos dos inquisidores, que não
entendem – ou não querem entender – de soluções. Mês passado abandonei o
trabalho que perturbava o meu coração, há tempos. Mês passado muita coisa
aconteceu, penso eu que para melhor; matriculei-me num novo curso, porque o
antigo, Direito, para mim, definitivamente não dá. Não suporto disputas e
afins. O psicanalista dá indícios de que fui colocado numa espécie de funil da
família tradicional, como se houvesse somente duas alternativas: ser doutor
advogado ou doutor médico. A verdade é que havia cansado, lá atrás, de lutar
contra a corrente dos “melhores juízos”. Felizmente, estou vivo, pulsando;
buscando tratamento e autocompreensão. Construí uma nova família, uma família
diferente, comprometida com os anseios de bem-estar subjetivo e social.
Descobri-me autista, depressivo e ansioso no ápice da virada. Minha esposa
entende e me ajuda a compartimentar ou a distribuir as potências. Meu filho é
um lindo bebê, que não percebe as nuances, claro. Por todos que me amam e por
mim, apesar do acúmulo de novidades – o que não é nada agradável para um
autista –, estou seguro de que poderei, em breve, serenar os nervos e seguir
viagem.
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